APRESENTAÇÃO: Nos anos de 2023 e 2024, o Rio Grande do Sul tem enfrentado enchentes de proporções catastróficas que deixaram inúmeras pessoas desabrigadas e resultaram em muitas perdas de vidas e danos materiais significativos. A tragédia afetou grande parte do Estado, deixando um rastro de destruição. A reestruturação e recuperação da região exigirão tempo e esforços contínuos, dada a extensão dos danos sofridos. A solidariedade e o apoio comunitário foram essenciais no auxílio àqueles que foram atingidos, auxílio este prestado civis, militares, estudantes, ONGs, entre outros. Muitas pessoas ficaram desalojadas e encontraram abrigo em locais provisórios, públicos e privados. Além disso, entre os desabrigados, estavam crianças, idosos, pessoas com deficiência, entre outras. Os abrigos foram montados e muitas pessoas se reuniram para ajudar os afetados, fazendo da união de esforços da população um importante meio de enfrentamento a esse período, especialmente porque, ao longo dos anos, a priorização do fator econômico, o negacionismo e a precariedade de políticas de enfrentamento à crise climática tem facilitado desastres como o ocorrido.
OBJETIVO: O presente trabalho pretende relatar o trabalho voluntário, desenvolvido durante o mês de maio de 2024, por estudantes da área da saúde, junto aos abrigos e ações de promoção de saúde durante as enchentes em Pelotas/RS.
DESENVOLVIMENTO: Este resumo se trata de um relato de experiência sobre o trabalho de dois estudantes voluntários da área da saúde em cinco abrigos da cidade de Pelotas, além da participação em um grupo de suporte à saúde mental de estudantes universitários, durante o período das enchentes. Cabe ressaltar que todas as ações relatadas ocorreram durante o período de greve da universidade, de modo que tanto a supervisão docente dos estudantes em campo quanto a orientação deste trabalho passaram pelo comitê de ética da greve.
Através das vivências em abrigos e grupos de suporte, foi possível conhecer com maior profundidade a forma com que as pessoas estão sendo assistidas e como estão conseguindo se reerguer. Em um momento em que o Estado se encontra desmontado, num abandono inclusive das medidas preventivas a catástrofes ambientais, as ações solidárias da sociedade civil se tornaram fundamentais. A análise dessa situação revela uma dolorosa realidade onde a assistência governamental foi insuficiente, sendo necessária uma significativa participação da sociedade civil. O Estado tem um papel essencial em promover políticas de prevenção e monitoramento destes eventos extremos, porém, quando a tragédia ocorre, ficam evidentes as lacunas no âmbito federal, estadual e municipal para dar conta de atender as necessidades da população, antes, durante e depois da tragédia. Esse cenário levanta questões sobre a responsabilidade e a capacidade do governo em proteger e apoiar seus cidadãos durante desastres naturais. Neste sentido, houve a necessidade de uma rápida estruturação de abrigos públicos e privados, para acolher as pessoas que precisaram deixar suas residências, o que se configurou em quase duas mil pessoas no município de Pelotas/RS. O trabalho voluntário foi o que garantiu o funcionamento destas estruturas.
RESULTADOS: Foram realizadas atividades em abrigos públicos para famílias atingidas e outro abrigo destinado a acolher crianças e adolescentes atípicos e suas famílias. Essas atividades, nas quais os voluntários participaram como colaboradores, foram conduzidas por professores da Universidade Federal de Pelotas, e encontram-se articuladas a dois projetos de extensão, dos cursos de Enfermagem e Psicologia. Devido à paralisação da universidade causada pela greve e pelas enchentes, muitos alunos permaneceram no município, e outros já eram residentes locais. Assim, os estudantes se voluntariaram para essas ações. Com as crianças dos abrigos, foram formados grupos que se revezavam em escalas para levar atividades recreativas e brincadeiras, enriquecendo o ambiente de forma lúdica. A primeira voluntária mencionou a dificuldade de testemunhar a situação das crianças, provenientes de uma comunidade extremamente vulnerável, que muitas vezes tinham acesso limitado a brinquedos e atividades na sua realidade. Muitas delas estavam felizes por estarem no abrigo, pois lá encontravam brinquedos, todas as refeições e pessoas para atender às suas necessidades. No entanto, outras crianças estavam muito tristes e não se comunicavam devido à dificuldade da situação que estavam vivendo.
Um primeiro ponto de destaque foram as dificuldades na organização local. Não havia um registro com os nomes e questões de saúde das crianças, o que levou a situações problemáticas, como uma criança insulinodependente que acabou consumindo doce sem que os voluntários tivessem conhecimento de sua condição. O segundo voluntário relata que, na experiência junto às crianças de um abrigo privado de Pelotas, pode observar a falta de preparo de pessoas responsáveis por esse espaço. Em diversas ocasiões, as crianças tinham um acesso bastante restrito aos brinquedos doados e aos espaços do abrigo. Ficavam em uma área específica para crianças, não podendo sair mesmo em caso de desentendimentos ou interesse repentino de ir fazer outra atividade. Com essa limitação, houveram momentos em que foi pedido que os voluntários priorizassem ajudar na manutenção dessas normas. Isso gerou um ambiente de muita tensão. Cabe ressaltar que essas limitações se somavam as já impostas pela condição climática: impossibilidade de voltar para casa, de ir para a escola, ver seus amigos, ter sua rotina, brincar com seus brinquedos, entre outras.
Outro momento significativo foi a intervenção junto às mães que estavam nos abrigos, especialmente nos que abrigavam crianças atípicas, foi realizado um grupo de escuta ativa juntamente com a aplicação de aromaterapia. Embora prevaleça o relato de um bom acolhimento no abrigo, surgiram relatos pontuais sobre diferenças na alimentação oferecida daquela que estavam acostumados, conflitos entre as pessoas abrigadas e a equipe. Além disso, muitas pessoas estavam recebendo um atendimento de qualidade, com acesso a recursos especializados que, fora do abrigo, não teriam como manter, criando outra situação conflituosa. Cabe o registro de um ambiente exaustivo, cheio de estímulos, onde tudo parece acontecer ao mesmo tempo, o tempo todo. Quanto à atividade realizada no abrigo para famílias de crianças atípicas, a adesão às atividades grupais foi mais tímida, devido à falta de costume das mães de terem um espaço para falar sobre seus problemas e a ausência de outra pessoa para ficar com as crianças durante o grupo.
Outra ação realizada foi um grupo de promoção da saúde mental para estudantes da UFPel, que permaneceram em Pelotas durante o período citado. Este grupo, que ocorreu de forma presencial duas vezes por semana, pretendeu oferecer um espaço seguro de escuta e troca, configurando-se em um dispositivo de suporte a estes estudantes universitários. A escuta e promoção da saúde mental tinham como objetivo minimizar os sintomas de ansiedade apresentados, visando acolher o recorrente sentimento de angústia, causado pela incerteza da situação que estava sendo vivida e o sentimento de insegurança por estar em um local que poderia inundar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: tendo em vista que a escrita deste trabalho se dá durante a enchente, é impossível discorrer com precisão sobre os resultados que esses trabalhos alcançarão depois da enchente. Porém, ressalta-se que, o trabalho solidário vindo da sociedade civil protagonizou ações, que se somaram às iniciativas do poder público. Sendo assim, sente-se profundamente a falta de capacitações permanentes, recursos e estratégias de prevenção e enfrentamento de crises, não só em meio ao desastre, como também antes dele.