As águas
No início de maio de 2024 fomos surpreendidos no Rio Grande do Sul, Brasil, pela catástrofe dos alagamentos, deslizamentos e enchentes. Primeiro foram os fortes ventos e chuvas no interior do Estado causando devastação em cidades e plantações, e na sequência dos dias a região metropolitana e a capital do Estado foram tomadas pelas águas doces do Guaíba que adentraram as ruas, os bairros num dos maiores desastres climáticos do país. Segundo a Defesa Civil, 471 das cidades do Estado foram afetadas, matou 169 pessoas e expulsou mais de 600 mil de casa. No período de dez dias, o Rio Grande do Sul recebeu uma quantidade de chuva que corresponde a cerca de um quarto do volume esperado para um ano inteiro (G1, 29/05/24).
Diante dessa tragédia anunciada, mas negligenciada por negacionistas climáticos, um grupo de professores e estudantes de comunicação e saúde coletiva organizaram um projeto para minimizar outra mazela de proporções tão cruéis quanto o desastre climático, as fakes news que consistem em informações enganosas, propagadas nas redes sociais como pólvora, que agravam mais a calamidade das enchentes. Atualmente vivemos em uma realidade de grande fluxo de informações, que se multiplicam de forma acelerada, havendo uma dificuldade de identificar uma informação confiável de uma não confiável. Outra questão é que muitas das informações que se propagam nas redes sociais, não são compreensíveis para parte da população, pelo preciosismo dos termos técnicos, uma linguagem que não dialoga com a realidade e necessidades vividas no território. Sendo assim, é necessária uma outra forma de comunicar.
Inundados destas questões, surge a proposta da Rádio Travessia a Rádio Flutuante, transbordando versos, sonhos e imagens afetivas tendo a ciência como escopo. A Rádio Travessia é uma rádio gaúcha, nascida em maio de 2024, em meio às enchentes do Rio Grande do Sul trazendo a “informação cuidadosa”. E com o objetivo de cuidar das pessoas, sendo um canal de comunicação popular abordando temas relevantes neste momento das enchentes, que tem produzido tantas dúvidas e angústias na população. Servirá também como canal educativo, para as pessoas que tiverem acesso às entrevistas e aos estudantes envolvidos no projeto.
A comunicação popular, nos explica Peruzzo (2009), tem suas origens nos movimentos populares dos anos 1970 e 1980, representando uma forma alternativa de comunicação que emerge de grupos populares, havendo um caráter mobilizador coletivo, podendo ser nominada de participativa, participatória, horizontal, comunitária, dialógica e radical, havendo um sentido político por ser uma maneira de expressão de segmentos vulneráveis da população.
A Rádio Travessia, a Rádio Flutuante caracteriza-se por programas de modelo podcast como estratégia de comunicação. A origem do termo é atribuída ao ex-VJ da MTV Adam Curry e mais tarde a Dave Winer, mas se popularizou quando o então presidente George W. Bush que durante seu governo criou um podcast semanal.
A travessia
No dia 12 de maio após conversas individuais criou-se o grupo no WhatsApp oficializando a ideia do podcast com informações de embasadas por técnicos da área da saúde, e pessoas envolvidas direto e indiretamente nas enchentes. Utilizamos a metodologia participativa, pois a maioria dos envolvidos eram da região sul do país e de uma forma ou outra estavam atravessados por essa tragédia. Em 15 dias definiu-se que o modelo do podcast seria de entrevistas, assim como à pessoa que ficaria responsável em agendar as conversas, que a entrevista seria conduzida por dois profissionais da área da saúde, as pessoas que dariam suporte técnico na produção do roteiro, gravação, edição, montagem e plataforma a serem disponibilizados. O primeiro episódio foi com um infectologista da UFSM, sobre esclarecimentos das doenças transmitidas pela longa exposição à água contaminada e meios de prevenção.
A construção da Rádio Travessia, leva em consideração que seu conteúdo deve ser disseminado de forma ampla e o mais universal possível. Assim, cada episódio terá sua versão em libras a infodemia das enchentes de maio arrebatou muitas pessoas da comunidade surda. Pensando nisso a equipe do podcast integrou ao grupo um interprete de libras que aceitou o estimulo de adaptar a narrativa realizando uma interpretação simultânea. Ajustou sua casa para a gravação e contou com uma equipe reduzida para que em tempo hábil a edição em libras estivesse no ar.
Estamos com três produções nesse momento, os episódios serão com: um geógrafo, buscando entender o que foi tudo isso que aconteceu; uma conversa com um sobrevivente climático da cidade de Alvorada, num dos bairros que por descaso do poder público desde praticamente a fundação do munícipio sofre com alagamentos e enchentes, fazendo com que esse tenha construído sua casa atual de palafita, que ficou 60 cm para alagar novamente; outro sobre a invisibilidade das condições de vida e de retorno às casas dos moradores da região do arquipélago de Porto Alegre (região das ilhas), nos fazendo pensar se a visibilidade midiática que teve esse evento foi por sua dimensão ou porque atingiu uma parte da população que não é vulnerabilizada, bairros de classe média e classe média alta de Porto Alegre, que seja dito, os primeiros a receberem as bombas de escoamento de água. Embora as regiões periféricas tenham sido as mais atingidas e ainda sofram com a negligência dos gestores locais, reafirma que a pobreza tem cor no nosso país, como nos informa Sueli Cardoso (2011); há temas previstos como os benefícios concedidos pelo governo federal, estadual e municipal, saúde mental e uma conversa sobre de quem é a culpa.
A flutuação
Como resultados observamos o engajamento imediato da equipe quando feita a proposta, os estudantes de multimídia por terem como pautas a importância do combate às fake news e os agentes de saúde na relevância de levar as informações com uma linguagem mais acessível ao público alvo. E termos esses registros como memória de um momento significativo na história do Rio Grande do Sul, e com pretensões que esse material sirva como didático para as futuras gerações.
Desejamos que o podcast Rádio Travessia a Rádio Flutuante, seja mais um mecanismo para combater a negligência de governantes e administradores de nosso país. Que esse veículo de registros e denúncias sirva como um potente instrumento para demonstrar o descaso do desequilíbrio natural causado pela expropriação do homem aos ecossistemas. A invasão desenfreada diante dos demais seres vivos nos faz “nesse momento sermos desafiados por uma espécie de erosão da vida” Krenak (p.95 2020). E contribuir nesse momento com a lucidez dos que desejam continuar com ela, que tenha o propósito de adiar o fim do mundo para podermos contar mais histórias, como também deseja krenak (2020).