As durezas do reducionismo biomédico e suas consequências têm levado à necessidade de se vislumbrar cada vez mais outras possibilidades de cuidado que atentem aos desejos, singularidades e sensibilidades humanas. Isso ressalta a importância de outras práticas possíveis e necessárias que podem oportunizar um cuidado mais amplo, flexível, humanizado e integral. Em março de 2022, a partir de uma parceria entre a Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre/RS e a Organização da Sociedade Civil Amurt/Amurtel, em meio à pandemia, teve início o Projeto Práticas Integrativas e Complementares em Saúde. A iniciativa vinculada ao SUS buscou oferecer ações de prevenção de doenças e agravos e promoção de cuidado e saúde para uma comunidade em situação de vulnerabilidade de um território específico. Durante nove meses foram oferecidas à população cinco Práticas Integrativas e Complementares em Saúde, dentre elas a arteterapia. Este relato busca apresentar uma experiência que envolveu abordagens alternativas de cuidado permeadas pela arte. Para tanto, fugindo um pouco à comunicação acadêmica convencional, uma história que diz respeito à interface arte e saúde é apresentada aqui em formato de conto. O conto traz a experiência de uma participante de um grupo de arteterapia, atravessada por processos de luto, ressignificados e transformações de si pelas quais ela passou no decorrer de um período aproximado de 5 meses. A protagonista da história recebeu nome fictício. O conto foi produzido em junho/2023 e narra vivências de encontros semanais de arteterapia em meio à pandemia, no decorrer de 2022. Outono de 2022 - dias cinzas: Ísis chegou pela primeira vez para participar do grupo de arteterapia. Havia ficado sabendo por meio de um jovem conhecido, educador social. Chegou cedo da tarde, muito curiosa, pois não sabia de que se tratava. Foi recebida e acolhida; e ao ser convidada a conversar individualmente com a profissional para se conhecerem, pois havia chegado antes de todas as outras, mostrou-se falante, dolorida e triste. Contou estar passando pelo pior momento da sua vida. Vinha de um luto triplo: a perda de três pessoas queridas da família durante o período próximo à pandemia, em 2021, além de uma menopausa – momento referido por ela como difícil para as mulheres. Confessa que chegou instigada pela palavra arte, pois era algo que muito lhe alegrava e coloria os dias antes de passar pelo período que definira como triste e depressivo. Inverno de 2022, tempos frios aqueles: Em um dos encontros com o grupo, após o primeiro momento em que sempre acontecem escuta, conversas e acolhimento, Ísis, assim como as outras mulheres, fora convidada a produzir um pequeno caderno costurado à mão. Feito com materiais simples, a proposta era que os cadernos servissem como incentivo para despertar e instigar reflexões sobre o que lhes gerava encantamento, a ser retratadas neles, por escrito ou com imagens desenhadas ou coladas. A construção de seu caderno foi empolgante! Contudo, ao chegar o momento de simbolizar o que lhe remetia às belezas que acalentavam e aqueciam a alma, Ísis se calou. Depois de alguns minutos em silêncio, relatou em tom de descoberta e tristeza: Nada mais me encanta, vejo tudo cinza! Com cuidado e delicadeza, Ísis, junto com as outras mulheres, foi conduzida a relembrar sobre um episódio que havia acontecido a cerca de uma hora e meia antes de se deslocarem para a sala da reunião. Os encontros do grupo aconteciam em um belo local em meio à natureza, no interior de uma comunidade vulnerável que reunia jovens, crianças e adultos em diferentes atividades. Durante o pequeno percurso de alguns metros, entre o portão de entrada junto à rua e a sala, as mulheres encontraram algumas crianças de mais ou menos 7 ou 8 anos, em círculo, acompanhadas de uma professora. Embaladas pela música de uma caixa de som, dançavam alegres sob a orientação de uma menina empolgada, que, sorrindo feliz, demostrava a coreografia e era imitada por todos. Ao passarem pelo grupinho, todas as mulheres sorriram tocadas pela meiguice e graça daquela cena. Passaram pelas crianças e permaneceram olhando para trás, parecendo querer ficar mais um tempo por lá apreciando o acontecimento. Tal episódio relembrado foi então convite para uma reflexão. O que haviam vivenciado naqueles instantes? O que isso havia produzido em cada uma? Seria talvez o tal do encantamento? Todas, em coro, com olhos brilhantes, e lábios esboçando sorrisos, na mesma hora, afirmaram que sim. Setembro de 2022, período de florescer: Em meados de setembro, aproximadamente 5 meses depois da chegada de Ísis ao grupo, num dia ensolarado de passarinhos cantantes e brotos de flores, já quase no começo da primavera, Ísis chegou ao grupo com uma pequena caixa de papelão e disse à arteterapeuta: “_Eu te trouxe um presente, prof.” Prof. era o apelido carinhoso dado por Ísis. “_Profe, eu fiz pra ti; e tu sabes bem o que isso significa. Eu também escolhi essa flor, o nome dela é Diamante!” A prof. recebeu, então, a caixa das mãos de Ísis de onde tirou um pequeno cachepô. Tratava-se de um vasinho de cerâmica, todo decorado, pintado à mão por ela, com belas e delicadas mandalas desenhadas em amarelo e azul. Nele estava plantada a pequena e resistente flor chamada Diamante. Atrás da flor havia fincado na terra um palito de churrasco com quatro setas no formato de plaquinhas que intercaladas direcionavam para a esquerda e para a direita. Placas, essas, uma de cada cor, com pequenas e delicadas flores desenhadas, e que reuniam as palavras: “NUNCA” “ESQUEÇA” “O QUE” “TE ENCANTA”. Início de um novo outono, 2024: O projeto recomeça e junto com outras mulheres Ísis retorna. Com entusiasmo conta que para ela a arteterapia foi um remédio que aos poucos foi abrindo as portas da sua alma e do seu coração, “como uma chave que vai abrindo e limpando as gavetas onde guardamos as bagunças”. Um caminho lento e vagaroso. Que hoje se sente melhor e todo dia é um começo; que a vida é feita de primaveras, verões, outonos e invernos. O simbolismo de Ísis retratou partes de um percurso de cuidado em saúde que une arte, afeto e acolhimento, o qual promoveu transformações nela; mas que também representa significativas mudanças singulares, vivenciadas, demonstradas e relatadas por todas as outras participantes do grupo. A arteterapia contribuiu para aflorar colorido e mudanças que conduzem ao autoconhecimento, autocuidado, autoestima, autoacalanto e empoderamento em um curto espaço de tempo. Essa narrativa, ao mesmo tempo que buscou demonstrar a potência da arte a partir de uma experiência de processo de cuidado em saúde, convidou e convida a mobilizar sensibilidades humanas, alteridade e reflexões a partir do sentir. Propõe deslocamentos internos no intuito de provocar olhares para dentro e percepções e possibilidades outras para os modos de se pensar - produzir saúde. E se perguntássemos com mais frequência para nós mesmos, nos permitíssemos sentir, e viver mais, afinal, o que nos encanta?