A formação em Psicologia exige que pensemos nossas práticas orientadas por um fazer ético-político que leve em conta as influências sociais existentes na constituição psíquica dos sujeitos. Sendo fundamental uma prática clínica de viés crítico, que esteja em constante debate e questionamento sobre as mazelas da sociedade de consumo. Neste sentido, um espaço que verse sobre estes aspectos é indispensável para a formação de profissionais da área da saúde mental. Não se trata de uma crítica vazia e meramente anticapitalista, pois o embasamento científico sobre a temática leva ao entendimento de que os imperativos neoliberais trazem consequências psíquicas diretas para os sujeitos, uma vez que os modos de subjetivação forjados na lógica da competitividade tendem a desumanizar as relações sociais e gerar sofrimento. Assim, surge a seguinte pergunta: qual o papel dos/as profissionais da Psicologia diante deste cenário? Na busca por respostas a esta questão, o presente resumo versa sobre a experiência formativa em um grupo de Iniciação Científica voltado a pesquisar sobre a relação entre neoliberalismo e sofrimento psíquico no contexto de trabalho docente, sendo fruto da pesquisa de doutorado de um dos autores. Neste sentido, valoriza-se a pesquisa como parte importante da experiência tanto acadêmica como profissional em Psicologia. Este escrito tem por objetivo realizar um relato de experiência sobre as vivências e discussões do grupo, a fim de refletir sobre a dimensão ético-política da formação em Psicologia, tendo em vista as demandas neoliberais que atravessam a profissão. O grupo é composto por acadêmicos do curso de Psicologia e por Psicólogos já graduados, o que permite um rico intercâmbio de experiências. Durante os encontros, com frequência semanal, são estudados artigos científicos relativos à temática, além de textos de autores clássicos, como Vladimir Safatle, Nelson da Silva Junior, Christian Dunker, Maria Rita Kehl e Jorge Larrosa Bondía. Tais autores e autora revelam a afinidade com a linha da Psicanálise e inspiram a construção do presente trabalho. Ainda, por se tratar de estudos na área educacional, autores como Paulo Freire, Gaudêncio Frigotto, Tomaz Tadeu da Silva e Pablo Gentili também serviram de inspiração. Quanto às experiências da iniciação científica, o grupo acessa diferentes produções artístico-culturais a cada semana, como músicas e vídeos. Pois compreende a importância da arte no resgate do valor cultural e sua relevância na formação em Psicologia. Em uma das reuniões debateu-se sobre o filme animado “Wish” e o curta-metragem “Ex-ET”, os dois tecendo críticas à realidade social atual. Dessa forma, observou-se que seus autores usaram da fantasia para condenar tanto a padronização dos desejos, com o qual as pessoas eram descaracterizadas, quanto a busca incansável por mais produtividade e controle das massas, chegando à total exaustão mental. Em outro encontro, cada participante foi estimulado a criar um conceito para o neoliberalismo, relacionando-o com as consequências para a saúde mental e o papel da Psicologia diante deste fenômeno. Logo, o neoliberalismo foi definido como um modelo político, econômico e social desenvolvido entre os anos 1930 e 1970 (desde a sua construção teórica até sua aplicação política) com o objetivo de reduzir os gastos estatais com o bem-estar social. Desde então, o Estado prioriza, cada vez menos, o investimento em políticas públicas que ofereçam acesso a direitos como educação, saúde e moradia à população. Assim, os recursos financeiros que antes eram encaminhados a estas políticas, agora são majoritariamente destinados a empresas privadas, o que caracteriza a privatização não só de serviços, como também de direitos sociais. Consequentemente, a exclusão e a desigualdade social crescem aceleradamente, uma vez que as classes dominantes são cada vez mais fortalecidas, sendo as únicas capazes de arcar com os elevados custos de acesso aos direitos sociais. Notou-se que, nesse panorama, existe uma valorização exacerbada do capital, sendo a geração de lucro priorizada em detrimento do atendimento às exigências democráticas dos cidadãos, o que revela a fragilidade da democracia neste sistema e a transformação do cidadão em consumidor/objeto. Isso torna-se evidente, partindo do exemplo da precarização estatal de uma das maiores conquistas democráticas da população brasileira, o Sistema Único de Saúde (SUS), e do favorecimento financeiro dos serviços de saúde privados. Tendo em vista que o cuidado com saúde mental não se resume ao tratamento de doenças, mas envolve também a promoção de condições de vida dignas à população. Tal precarização - não somente do SUS, como da garantia de outros direitos sociais - pode, em si, atuar como um meio de produção do sofrimento psíquico. Bem como os mecanismos reforçadores de discursos meritocráticos, que operam à serviço da manutenção do status quo do sistema vigente. Uma das reflexões mais profícuas acerca da ideologia neoliberal foi o entendimento de que ela não exerce influência apenas nos âmbitos econômico, social e político: desde o início do seu desenvolvimento, este sistema vem reelaborando também as formas de representação e significação social. Dessa forma, o neoliberalismo opera a partir da ressignificação de termos e da transformação da linguagem a favor da lógica empresarial. Os sujeitos passam a ser compreendidos como “empreendedores de si”, levados a crer que o acesso aos direitos e aos bens materiais depende da quantidade de esforço por meio do trabalho “investido” (a escolha do termo é intencional) individualmente. Por isso, aqueles que não conseguem alcançar a meta desejada, são inteiramente responsabilizados por seu “fracasso”, eximindo o Estado da responsabilidade de garantir justiça social e aumentando a auto exigência por eficácia. Esta individualização de questões que, na verdade, têm origem social, não só reforça o sistema vigente, como também atua como uma causa de sofrimento psíquico. Finalmente, as experiências do grupo evidenciam a importância da existência de espaços de discussão acerca da temática neoliberal no contexto universitário, especialmente na formação em Psicologia. As reflexões que surgiram nos encontros revelam sua pertinência e indispensabilidade, ao oportunizarem o aprendizado acerca da linguagem dos mecanismos que exercem influência direta sobre os modos de vida contemporâneos. Entende-se que, ao passo que os participantes do grupo apropriam-se de conceitos referentes ao neoliberalismo, constroem um saber psicológico pautado na identificação do sofrimento gerado pela razão neoliberal, capacitando e motivando a busca por recursos e alternativas para promoção da saúde mental. Compreende-se então que o papel do psicólogo na atualidade não deve ser baseado na antiética de adequar pessoas à lógica do mercado em prol da manutenção do sistema. O fazer psicológico deve ser voltado a uma análise crítica e desnaturalizante da situação social. Entendendo que, por mais que o neoliberalismo possa parecer a única alternativa possível, é um sistema que, uma vez construído, pode ser desconstruído. Como profissionais da escuta, é importante apostar nas pequenas rupturas trazidas na linguagem, que, muitas vezes, já está bastante apropriada pela lógica empresarial. A partir disso, os sujeitos podem encontrar novos significados que auxiliem na transformação gradual da adoecedora auto exigência por eficácia. Ainda, é importante compreender o contexto social e histórico em que cada um está inserido para que não se caia na falácia de padronização estimulada pelos ditames neoliberais. O sofrimento psíquico não é sentido da mesma maneira por todos, e depende de múltiplos fatores. Portanto, o papel do psicólogo consiste em promover espaços de acolhimento, ressignificação e humanização, práticas que devem ser exercitadas desde a formação.