Da estereotipagem a transformação de preceitos sócio-histórico: extensão universitária com pessoas privadas de liberdade

  • Author
  • Lidiane Herlein Dalla Vecchia
  • Co-authors
  • Natalia Dorneles Messa , Vanessa Pereira Fagundes , Aléxia Cardozo Scherer , Leticia Silveira Cardoso
  • Abstract
  • A estereotipagem pode ser compreendida como uma afirmação generalista e não rigorosamente avaliada, de senso comum, adotada como verdade por um coletivo da sociedade. Nesta perspectiva as pessoas privadas de liberdade têm sido historicamente estereotipificadas pela violência dos crimes divulgados midiaticamente, ou seja, reduzidas ao ato infrator. A desconsideração das condições de vulnerabilização enfrentadas pela maioria deles em seus processos de crescimento e desenvolvimento humano pode ser um dos principais pontos de reflexão. Talvez muitos dos que os estereotipificaram produzissem ato de maior violência se estivessem expostos as mesmas condições sócio-históricas que colaboraram para a construção de preceitos que os desumanizam, acentuam sua exclusão e minimizam as possibilidades de reinserção social, ou seja, os mantém sempre a margem e marginalizados junto à sociedade. Muitos estudos brasileiros evidenciam que as pessoas privadas de liberdade são em sua maioria adultos jovens, de baixa escolaridade e renda, com histórias de vida familiar e social marcadas por agressões, envolvidas com o uso/abuso de substância químicas ilegais ou com o tráfico dessas. Diante disso, as universidades, em especial, as públicas e gratuitas, devem primar pelo desenvolvimento não só profissional dos universitários, como também pelo da cidadania, conforme as diretrizes do Plano Nacional de Educação, Lei n. 13.005, de 25 de junho de 2014. De encontro a este, o Conselho Nacional de Educação, por meio da Resolução n.7, de 18 de dezembro de 2018, estabelece as diretrizes para a extensão na educação superior brasileira. Em conjunto tais diretrizes enfatizam o potencial de vivências e experiências de aplicação e ampliação de conhecimentos e habilidades profissionais por meio de processos que desenvolvam a criticidade e responsabilidade dos universitários-cidadãos. Neste sentido, o cenário e a população deste estudo, pelo já exposto, por si só fortalecem as proposições implicadas nas diretrizes supracitadas. Já que o presente estudo foi elaborado com o objetivo de contribuir para a transformação de preceitos sócio-históricos relativos à estereotipagem das pessoas privadas de liberdade. Trata-se de um relato de experiência vinculado a inserção de discentes do quarto e quinto semestres do Curso de Enfermagem da Universidade Federal do Pampa - Campus Uruguaiana, em um programa de extensão universitária, denominado ASA (Agilidade, Simplicidade e Alteridade). Este é desenvolvido semanalmente, desde o ano de 2023, junto ao sistema prisional de um município da fronteira oeste do Estado do Rio Grande do Sul – Brasil. Primeiramente realizaram-se consultas de enfermagem a pessoas privadas de liberdade e servidores penitenciários, em consecutivo promovem-se ações de educação em saúde para ambos participantes. Inicia-se a apresentação dos resultados, ao encontro do objetivo proposto para este estudo, pela exposição dos preceitos silenciosos emergidos na divulgação e oferta de vagas para as atividades de extensão no referido programa junto às atividades de ensino de dois componentes curriculares de graduação. A primeira manifestação do coletivo de discentes presentes foi recusar o convite à participação voluntária imediatamente relacionada a uma sensação de depreciação da docente e a efervescência da reciprocidade entre os discentes. Já que a docente propõe inseri-los em um ambiente que historicamente é para ser isolado e de difícil acesso. Então surgem os preceitos de desumanização das pessoas privadas de liberdade, os quais fazem com que ocorra o rompimento do silêncio discente. Comentários e posicionamentos pessoais são apresentados e ouvidos com atenção pelos presentes, docente  e demais discentes. A rigidez e dureza contidas neles causam desconforto em alguns discentes, pois foi sugerido que quem está cumprindo uma sentença judicial por transgressão à ordem  social não possui uma aparência de ser humano, porque são criminosos e como tais, monstros. Esta palavra atiça o imaginário individual e as experiências da infância geram figuras/imagens únicas para cada um presente neste momento, as quais são vinculadas verbalmente a personagens de ficção e terror. Nessa seara, a docente retoma sua fala abordando os preceitos éticos do exercício profissional da enfermagem a serem seguidos na área da assistência, gerência e educação, discorrendo sobre Lei COFEN n. 7.498 de 25 de junho de 1986, princípios de bioética até o juramento realizado no ato da formatura dos enfermeiros. Em consecutivo, faz a reflexão sobre a existência e o trabalho dos servidores penitenciários, das famílias e instituições religiosas como a Pastoral Carcerária que já cumprem importante papel juntos as pessoas privadas de liberdade. Por fim, explana sobre as políticas de reinserção social de pessoas em situação de vulnerabilidade e a importância da participação da universidade nelas. Suavizando sua fala, a docente compartilha as experiências de visitas técnicas à unidade prisional de sistema fechado e de realização de consultas de enfermagem a pessoas privadas de liberdade realizadas desde o ano de 2019. Destaca a realização das mesmas, quer no interior do sistema prisional, quer na rede de atenção à saúde local. A partir do que ela solicita a conferência dos diferentes estudos publicados pelos membros do Laboratório de Investigação e Inovação em Saúde de Populações Específicas, equipe criadora e executora do programa em questão. Após isso, poucos discentes foram sensibilizados e decidiram participar, o temor permaneceu entre a maioria deles. Aqueles poucos discentes foram inseridos no sistema prisional no regime semi-aberto acompanhados pela docente. Essa ao acessar o ambiente foi imediatamente reconhecida e acolhida pelos servidores penitenciários e algumas pessoas privadas de liberdade que estavam trabalhando nas áreas de higienização e alimentação. As manifestações de gratidão e a atenção de todos foram estendidas aos discentes e imediatamente iniciou-se o processo de transformação dos preceitos de depreciação e desumanização e o sentimento de valorização da profissão desde então só aumenta. Já no desenvolvimento das atividades de extensão, ao atender as pessoas privadas de liberdade juntamente com um dos servidores penitenciários a comunicação flui entre todos. Já que as dúvidas em saúde eram compartilhadas e a docente estava presente para auxiliar nas respostas e na realização dos procedimentos de avaliação primária em saúde. A intensidade dos questionamentos, a compreensão de que os discentes estavam em processo de aprendizado, a busca pelo retorno às indagações, o compromisso de retornar com algumas explicações e o apoio docente para isto, transbordou o ambiente prisional. Isto porque a satisfação e o desejo em realizar as atividades de extensão chamaram a atenção de docentes e outros discentes quando em diálogos extraclasses ou na apresentação de trabalhos. Apesar de ainda poder existir entre os discentes temores relacionados às pessoas privadas de liberdade, há uma grande adesão e interesse pela participação e conhecimento dos resultados das ações dessa extensão. Pode-se concluir que os preceitos éticos sobrepujaram os demais e que a extensão universitária em questão qualifica a formação profissional. Mais do que permitir exercitar as competências e habilidades profissionais, ela transformou pessoal e academicamente os extensionistas. Estes, ao se confrontarem com histórias de vida marcadas por traumas, abusos, arrependimentos e esperanças, testemunharam a resiliência, a capacidade e o desejo de transformação de cada pessoa privada de liberdade que busca reconstruir sua vida mesmo diante das adversidades sócio-históricas que marcam suas trajetórias de vida. Vislumbrar a importância das suas competências e habilidades profissionais para garantir à universalidade do acesso a assistência à saúde para todas as pessoas, privadas de liberdade ou não. E, principalmente de se despir de preceitos de qualquer natureza para usufruir das oportunidades de qualificação e não perpetuarem estereotipagens.

  • Keywords
  • Prisioneiros, Estereotipagem, Enfermagem, Universidades
  • Subject Area
  • EIXO 1 – Educação
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