Apresentação: Esse trabalho é produto de uma dissertação de mestrado em Saúde Coletiva, pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), que buscou realizar uma cartografia sobre o cuidado em saúde junto a pessoas que vivem nas ruas usuárias da Rede de Atenção à Saúde (RAS) de um município no norte do Paraná. Ao se tratar de pessoas que vivem nas ruas, a literatura costuma trazer a temática enquanto uma máxima expressão da desigualdade social que reflete em uma população em contexto de moradia irregular de caráter heterogêneo e, também, com vínculos familiares fragilizados e/ou rompidos. Nos tempos contemporâneos, em uma sociedade marcada pela industrialização e urbanização, os modos de vida são orientados para um certo sedentarismo (no sentido de moradia regular) e pelo consumo enquanto status quo. Assim, modos de vida dissonantes a esses, como as pessoas que vivem na rua, de caráter nômade, costumam sofrer com as implicações desse modo de vida hegemônico sedentário - inclusive no que tange ao acesso e barreiras na produção de cuidado. O objetivo deste trabalho foi cartografar uma vivência sobre o cuidado em saúde junto a um casal-guia que vive na rua usuários da RAS do município. Desenvolvimento: A abordagem cartográfica busca retratar paisagens psicossociais em um entendimento de que, modos de existência, também se constituem em territórios advindos da subjetividade desejante das pessoas, que estão em constante movimento. Destarte, foi realizada uma imersão em campo, a RAS do município, na perspectiva do pesquisador in-mundo, ou seja, de mergulhar na rotina do serviço aberto as implicações afetivas dos encontros com os usuários. Foi utilizada a ferramenta do usuário-guia, que consistiu em elencar um usuário que vive na rua a partir das afetações vividas em seu encontro. Essa cartografia se desdobrou em três contos sobre uma vivência junto a um casal-guia, de feição muito alegre, que vive nas ruas: Bebel e Agostinho (nomes fictícios). No caso, aqui, pretendo partilhar o conto “Arrumaram uma casa: sonho ou tédio?”, sobre quando esse casal buscou adotar um estilo de vida de moradia regular e suas respectivas reverberações. Resultados: Tudo começou quando a equipe do CnaR tomou conhecimento de que, devido a um processo infeccioso, Bebel acabou por ser internada em um leito de Hospital Geral para o tratamento, e ponderada sobre as necessidades dos cuidados pós-hospitalares em domicílio. Dito isso, acabaram por ir morar na casa de Lineu, sogro de Bebel e pai de Agostinho. A primeira coisa que busquei foi pela nova UBS de referência. A equipe logo me acolheu e se disponibilizou para dar carona e encontrar o casal. O mais incrível é que, nesse mesmo dia, o endereço de Bebel e Agostinho estava na agenda de visitas domiciliares! A ACS e a profissional de enfermagem contextualizaram que se tratava de Lineu, um senhor aposentado acompanhado pela equipe, em especial, por Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT). Lineu à parte, a equipe prontamente me encaixou no carro junto ao médico, ACS e enfermeira para a visita. A minha expectativa era alta: afinal, quem nunca sonhou – ou sonha – em ter uma casa própria? Ao chegar, fomos recebidos por Agostinho. Sentamos juntos e aconteceu a apresentação de Agostinho à equipe – o senhor Lineu, seu pai, era o alvo de atenção. Enquanto atendiam-no, Bebel saiu do banho e se juntou à conversa com Agostinho sobre o sogro – mas, antes, disparou a seguinte fala: não tem jeito, vocês acham mesmo a gente, ein? Bebel e Agostinho acompanharam o atendimento de Lineu, complementavam e correspondiam aos pedidos da equipe sobre quais cuidados deveriam ser tomados, assim como os medicamentos. Terminada a consulta à Lineu, pactuamos de eu ficar para papearmos e a equipe da ESF seguir sua agenda de visitas e me buscar depois – levei até um lanche. Dito isso, ficamos os quatro, mas apenas Lineu parecia querer conversar. Bebel estava mais entretida (ou entediada) com a interação entre os dois cães da casa. Aliás, um daqueles entretenimentos que me remetem ao tédio de quando você está em lugar não muito a fim de socializar e opta pelo cachorro ou o gato no ambiente. A partir daí, o assunto se tornou justamente esse: casa. Afinal, como está sendo morar em uma casa? Receio que, talvez, devo ter esboçado minhas expectativas em meu corpo. Expressavam, ambos, uma narrativa sobre como era bom estar sob uma moradia regular, no entanto, diferente dos encontros que tivemos nas ruas, eles não denotavam a mesma feição alegre e empolgada. Doravante, logo me vi diante de certo tédio – a hora passava devagar, ao contrário de quando nos encontrávamos na rua. O lanche sequer chamou muita atenção. Tentei quebrar a monotonia desse diálogo perguntando se não sentem falta da rua – até disseram que em alguns momentos sim, como de certa liberdade – mas, retomam a questão de como o que é certo é focar em se estabelecer, fazer aquele clássico projeto de vida, mas sem denotar muito entusiasmo. Me peguei ansioso para que a ESF voltasse logo para me buscar – estávamos os três, arrisco dizer, entediados assistindo um filme – e fiquei aliviado quando a equipe chegou. Por fim, passadas duas semanas, o casal-guia volta a viver nas ruas e, o mais curioso, é que me senti aliviado com isso. Afinal, mesmo com todos desafios inerentes ao modo de vida nas ruas, sinto que retomaram o brio. Considerações finais: A relação com o casal-guia em moradia regular me soou mais subjugadora de sua potência de vida do que produtora de cuidados quando comparada com o modo de vida nômade, nas ruas. O que quero dizer é que esse trabalho não busca realizar uma análise ingênua e romântica sobre as mazelas produzidas pela violenta desigualdade social presente em nosso país. Pelo contrário, essa análise teve a intenção de evidenciar o quão as relações de poder desse processo histórico, de forma ardilosa, ainda hoje realizam certo loteamento de nossos modos de vida e restringem nossas possibilidades de afetos.