Apresentação
O presente estudo trata–se de um relato de experiência implicado na realização de uma visita técnica e de uma territorialização, possíveis através da disciplina de Psicologia de Saúde I, do curso de Psicologia na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) no primeiro semestre de 2024. Tais arranjos tiveram como cenário a Unidade Básica de Saúde (UBS) Gurugi e seu território, cuja abrangência é o quilombo Gurugi I e II em Conde-PB. A relevância de destacar a esfera étnico-racial no campo da saúde se dá pela noção do histórico discriminatório, cuja herança é escravocrata e se faz presente até hoje, de tal maneira que marginaliza populações negras, impactando seu acesso aos serviços de saúde, principalmente as comunidades quilombolas. Alguns marcadores presentes no cenário brasileiro, de disparidades socioeconômicas e de condições de moradia resultantes desse contexto histórico, também são determinantes na saúde dessas populações.
Verifica-se que nosso passado também é marcado por um racismo institucional, manifestando-se por recriminações que sujeitos racializados eram submetidos, seja por sua cor, ascendências raciais ou étnicas, denunciando o despreparo das instituições e organizações na oferta de serviços. Por isso, os movimentos sociais e reivindicações por uma agenda que contemplasse temas raciais em saúde, reforçaram o desenvolvimento, por parte do Estado, da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra e as políticas de equidade em saúde.
Tendo em vista que povos tradicionais possuem como característica saberes próprios compartilhados entre si e passados de geração em geração, como cultivo e utilização de produtos naturais. Nosso objetivo foi verificar como a população quilombola desse território tem sido assistida pelo equipamento de saúde e, sobretudo, como eles produzem saúde. Isso diz respeito a compreender as condições de vida dos sujeitos, seu território físico, mas também buscando acessar o território existencial, as tecnologias utilizadas por eles, saberes e culturas que circulam e que produzem bem estar para esse povo.
Desenvolvimento
A partir, então, da nossa circulação no território, dialogando com usuárias e usuários presentes na UBS, bem como com moradores que passavam nas ruas, buscamos captar os elementos comuns produtores de saúde para a população local. Nossa intenção esteve em cartografar agenciamentos coletivos que cruzam e forças que atravessam esse lugar nas movimentações operadas, para que, ao termos o diálogo com os profissionais da UBS, pudéssemos identificar como as políticas previstas estão sendo executadas e quais as maiores demandas nos atendimentos em saúde.
Para que tal ação fosse realizada, foi preciso nos atentarmos a alguns pontos que poderiam ser importantes analisadores. A noção de interdisciplinaridade no trabalho em equipe e na criação de estratégias de cuidado nos convida a pensar uma práxis profissional que, para além dos saberes técnicos e disciplinares já postos, pode articular-se de maneira tal que compreenda e considere saberes não-científicos e populares. Em uma óptica, então, que ultrapassa o disciplinar para o campo da experiência e confronta com conhecimentos não disciplinarizados, e mesmo contradizentes as percepções ocidentais. Assim, tal horizonte implica distanciar-se de uma colonialidade da saúde, pois a partir do momento que se propõe a dialogar com saberes tradicionais, a práxis no campo da saúde não deve dissociar-se da terra, do pertencimento e da comunidade.
Com tais propostas em vista, foi muito importante no encontro com o território, a relação com uma líder comunitária desse, para assim imergimos nos contextos do coletivo presentes ali, entender os posicionamentos profissionais e sua própria inserção e relação de pertença a terra, verificados no equipamento de saúde referência para a população dos quilombos.
Resultados
A respeito do acolhimento na UBS, este é feito pela enfermeira que é moradora do Gurugi e conhece bastante dos usuários, em geral, a maioria dos profissionais são do território. Pudemos compreender que nas escutas há muitos casos de ansiedade verificados pela profissional de psicologia, e apesar de não terem sido destacados marcadores raciais como uma demanda forte, existem ocorrências de casos de racismo em uma escola local, por isso, e entre outros casos, a psicóloga também faz escutas com crianças. Verificou-se também que o território tem uma preocupante crescente da criminalidade, fator que impacta na circulação e sensação de segurança dos moradores.
Torna-se relevante também citar que campanhas de promoção e prevenção são realizadas na unidade. Porém, ainda há algumas limitações, visto que não realizam atividades de educação permanente voltada para os profissionais, as quais seriam essenciais para qualificação da atenção, pois incluiria o reconhecimento de saberes dos povos tradicionais da região, poderia trazer à tona temáticas de racismo e compartilhamento de particularidades possíveis no que concerne à atuação de gestão e atenção. Pois, ao visitarmos a construção da nova estrutura da UBS, que estava para inaugurar, soubemos que era previsto, em seu planejamento inicial e licitado, que haveria uma horta comunitária para plantação de ervas medicinais. Tal plano foi considerado justamente devido a demanda e necessidade que os próprios usuários e usuárias sentiram de tal dispositivo de cuidado, porém, infelizmente este foi retirado do orçamento.
Em contraste a esses elementos percebidos na UBS, convém citar algumas práticas de cuidado que os moradores compartilham entre si que pudemos cartografar. Foi notório que o senso de pertencimento é muito presente no território. A líder comunitária destacou que em um dos momentos mais frágeis relacionado a saúde - a pandemia da Covid-19 - os moradores faziam preparos de comidas e chás com produtos de suas próprias terras, havendo sempre uma corresponsabilidade entre eles de cuidado uns com os outros, isso fez com que nesse território não tivesse casos com sintomas graves da doença.
No Gurugi é cultivado e produzido artesanalmente, tanto para uso, quanto para venda, plantas que possuem propriedades curativas e nutritivas. A ora-pro-nóbis, planta nativa das américas e introduzida pelos negros vindos de África em sua alimentação, é muito utilizada na região, responsável pelos processos de combate a inflamação, prevenção de anemia e amenização de dores. Já o óleo de batiputá também é muito forte, cultivado nos solos quilombolas, mas também nos solos indígenas tabajaras do Conde, terra conquistada em meio a muitas lutas. O óleo de batiputá representa uma forte conexão com a ancestralidade para ambos os povos, conexão com o território sagrado e fértil, propriedade que alimenta e cura esses povos ao longo das gerações atravessadas por luta e resistência em seus processos de libertação, garantia de direitos e justiça social.
O manejo, preparação e utilização de muitos dos produtos naturais são perpassados pelas famílias e as tecnologias são ensinadas para benefício do coletivo, evidenciando que tais movimentos agenciam no bem estar da população quilombola do Gurugi, pois tais movimentos caminham no sentido de coletivizar modos de produzir saúde entre eles, fortalecendo o comum ligado a qualidade de vida. Além disso, é realizado no quilombo a festa de coco de roda uma vez ao mês, a respeito desses encontros e espaço de celebração a líder comunitária expressou que sente que os profissionais precisam ter mais contato com as práticas.
Considerações finais
Consideramos, diante do exposto, que a territorialização realizada nos permitiu encontrar com as singularidades da população quilombola do Conde. Isso nos fez refletir a importância de desenvolver uma práxis em saúde que tenha sensibilidade e compromisso ético político, apontando para a produção de modos de romper com o racismo institucional e valorizando as potentes formas de produzir saúde advindas da ancestralidade quilombola.