“A gente não consegue abordar”: implicações dos preceitos neoliberais no enfrentamento da violência contra a mulher por uma equipe de Estratégia de saúde da família.

  • Author
  • Jeremias Campos Simões
  • Co-authors
  • Jeanine Pacheco Moreira Barbosa , Stephania Mendes Demarchi , Lorena Costa Soprani Pereira , Rafaela Ferreira Nascimento , Raila Souza Quinto , Silvanir Destefani Sartori , Maria Angélica Carvalho Andrade
  • Abstract
  •  

     

    Apresentação: do que trata o trabalho e o objetivo:

    A violência contra a mulher configura-se como problema de saúde pública, e sua intervenção requer lidar com a complexa rede de fatores envolvidos. A atenção Primária à Saúde, por meio de diferentes equipamentos de saúde, entre eles a Unidade Básica de Saúde (UBS) que adota as diretrizes da Estratégia de Saúde da Família (ESF), ocupa lugar de relevância no enfrentamento da violência contra a mulher, destacando-se a territorialização e proximidade das equipes de saúde com a comunidade, família e indivíduo.

    Assim, a ESF represente marco para política de reorganização da atenção básica, tendo como foco a expansão, qualificação e consolidação da atenção básica e com isso atender as necessidades de saúde dos indivíduos e famílias. No entanto, efeitos da reestruturação da administração pública, ocorrida de maneira global, em que os métodos de gestão são empregados de maneira genérica, independentemente das especificidades dos locais ou dos serviços, têm afetado a gestão das ESF’s. Como efeito, há modificação da forma de gerir os serviços públicos consoante com princípios do setor privado. Essas transformações implicam no cotidiano do trabalho em saúde criando barreiras para lidar com situações sensíveis como o caso da violência contra a mulher. Com isso, o objetivo do estudo foi compreender os processos de trabalho referente a intervenção em saúde relacionada à violência contra a mulher, nos quais envolvem trabalhadoras e trabalhadores no âmbito da política ESF.

    Desenvolvimento do trabalho: descrição da experiência ou método do estudo

    Trata-se de estudo descritivo, de abordagem qualitativa. Como sujeitos de pesquisa participaram trabalhadoras e trabalhadores de saúde, de nível superior, integrantes de Equipe de estratégia de Saúde da Família, de uma Unidade Básica de Saúde, localizada na região metropolitana de Vitória-ES. No processo de pesquisa, ocorrido entre os meses de janeiro a junho de 2023, foram entrevistados 12 (doze) sujeitos de pesquisa, sendo: 03 Enfermagem, 01 Fonoaudiologia, 04 Medicina; 01 Odontologia e 03 Psicologia.  As entrevistas foram conduzidas nas instalações da UBS, de forma individual, gravadas e com garantia de anonimato para os participantes. Os dados foram produzidos a partir de entrevistas semiestruturadas, e analisados por meio da análise de similitude com auxílio do software Iramuteq. Em razão da pesquisa envolver temas sensíveis, dos quais, associam-se a subsistência dos entrevistados e rede de sociabilidade cotidiana, como cuidado ético a UBS e os entrevistados não foram identificados. Respeitando as diretrizes de pesquisa envolvendo seres humanos, o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa sob parecer nº 5.640.771.

    Resultados: os efeitos percebidos decorrentes da experiência, ou resultados esperados ou encontrados na pesquisa;

    A análise de similitude, que tem como base a teoria dos grafos, permitiu a detecção das coocorrências entre as palavras, e a representação visual obtida por meio da análise do corpus evidenciou as relações de conexão entre os termos, destacando a ocorrência da palavra "a gente" (n: 809), manifestada com significante e categorizada como “a gente” enquanto profissional, no sentido de atuação da trabalhadora e do trabalhador da saúde, considerando intervenções de cada categoria profissional.

    A análise dos comentários das trabalhadoras e trabalhadores conduziu à compreensão de que a intervenção desses profissionais, enquanto "a gente" no sentido de equipe multidisciplinar, interage na promoção da saúde no contexto da violência contra a mulher, evidenciando a centralidade do trabalho e o protagonismo dos trabalhadores e a relevância das ações da ESF na dramatização do mal perante a promoção de saúde diante da violência contra a mulher.

    No entanto, emerge também elementos que sinalizam para a disfunção das ações da ESF. Esses elementos são verificados nas falas das trabalhadoras e trabalhadores de saúde [...] realmente algumas coisas eu acho eu tenho certeza que passam, nem acho, tenho certeza que algumas coisas vão ficar para trás. 20 minutos de consulta é uma coisa complicada. A gente não consegue abordar (E4). Evidência que a trabalhadora e o trabalhador de saúde são compelidos a lidar com uma condição de trabalho que objetiva “[...] quantidade do que realmente qualidade do atendimento, do que é melhor para o paciente [...]” (E4).

    Observa-se também efeitos da reestruturação da administração pública, ocorrida de maneira global, em que, os mesmos métodos de gestão são empregados de maneira genérica, independentemente das especificidades dos locais ou dos serviços. Assim, mesmo a UBS atender conforme a política ESF, é exigido do trabalhador um “[...] número x de atendimentos por dia” (E4). O foco do profissional é então distorcido: “então o ponto é que a gente está pensando em família, não em quantidade. (E4)”. Ocasiona com isso, indicativo de disfunção da política ESF: “O tempo de consulta eu acho pouco, 20 minutos eu acho para fazer medicina de saúde da família, eu acho impossível” (E6).

    Essa reestruturação visa configurar os serviços públicos consoante a princípios do setor privado, posta como solução para atingir eficiência, eficácia e otimização de recursos. Nesse contexto de economicização, a hipótese é de que esses princípios ao permearem a intervenção de problemas de saúde multifatoriais, como a violência contra a mulher, promove disfunções de política como a ABS e ESF.

    Considerações finais;

    Identificou-se na análise o protagonismo das trabalhadoras e trabalhadores de saúde no enfrentamento da violência contra mulher, porém foi evidenciado barreiras no cotidiano do trabalho desses profissionais. Essas barreiras são evidenciadas na disfunção da política ESF e ocorrem quando a gestão da UBS e a promoção de saúde é operacionalizada a partir de preceitos e princípios privados de gestão. É uma das consequências da propagação da racionalidade neoliberal que atinge os serviços de saúde, produzindo cuidados pautados na economicização da vida. A gestão baseada em preceitos neoliberais difere da política ESF enquanto a busca por resultados econômicos e quantitativos, não considera que problemas de saúde, como a violência contra a mulher, são multifatoriais. Assim, as intervenções que buscam resultados com base em premissas de causa e efeito muitas vezes acabam sendo frustradas.

  • Keywords
  • violência contra a mulher; Trabalhadores de Saúde; Estratégia de Saúde da Família.
  • Subject Area
  • EIXO 7 – Rotas Críticas - Narrativas de Violência Contra a Mulher
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