Introdução
A experiência relatada diz respeito a uma dissertação desenvolvida na cidade de Petrolina, sertão pernambucano, além de vivências junto as pessoas em situação de rua no período da Residência Multiprofissional em Saúde Mental na mesma cidade. Neste sentido, o objetivo deste trabalho é refletir sobre a experiência de mulheres em situação de rua, particularmente em relação aos seus modos de vida e estratégias de enfrentamento às situações de violência cotidianas.
A compreensão do fenômeno de pessoas que se utilizam da rua enquanto espaço de vivência e sobrevivência perpassa as condições sócio-históricas que conformaram as dinâmicas de desigualdade do Brasil, estruturalmente racistas. A colonização das Américas foi responsável pelo processo de diferenciação e hierarquização das raças, criadas para justificar e naturalizar o violento processo de dominação dos demais povos, em especial dos povos originários e escravizados trazidos posteriormente de África, apresentando efeitos que ainda se fazem presentes na atualidade.
Se com o processo colonial se inicia o assassinato de povos originários e o sequestro e escravização de povos negros, posteriormente os processos de urbanização/industrialização num país colonizado, com a formação de centros urbanos voltados para o agronegócio, como é o caso da cidade de Petrolina/PE, representam, na atualidade, desdobramentos e continuidades de violências sócio-históricas. Essas se dão em camadas cada vez mais profundas e que se atualizam de diversas formas, desde a divisão racial do espaço até a “pele/corpo” de pessoas em situação de rua.
As péssimas condições de trabalho, saúde, assistência e seguridade faz com que o cotidiano nas ruas esteja a todo tempo atravessado pela questão da sobrevivência. Esse contexto se mostra ainda mais complexo quando pensamos nas mulheres em situação de rua e consideramos a interseccionalidade dos marcadores de gênero, raça e classe que atravessam suas vivências.
Desenvolvimento
A entrada e imersão no campo foi viabilizada através do Núcleo de Mobilização Antimanicomial (2015), pela relação com o Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD) (2016), e particularmente pela vinculação ao Consultório na Rua (CnaR), em 2019, durante a Residência Multiprofissional em Saúde Mental. O CnaR é um equipamento da rede de saúde que tem por função desempenhar atividades in loco, de maneira itinerante, de modo que suas ações ocorrem de forma integrada as redes de saúde e socioassistencial, de acordo com a necessidade da pessoa atendida. A partir dessa relação com o CnaR desenvolveu-se também o trabalho de campo do mestrado, entre julho e dezembro de 2020, sendo utilizadas compreensões da etnografia e da cartografia enquanto métodos e a técnica de participação observante.
O desenvolvimento do campo por meio do acompanhamento das atividades do CnaR da cidade de Petrolina possibilitou o acesso aos diferentes espaços da cidade, modos de vida e outros aspectos do cotidiano de pessoas em situação de rua. Entre todas as experiências vivenciadas será feito um recorte sobre o cotidiano das mulheres, considerando a multiplicidade e especificidades deste público neste cenário.
Resultados
As mulheres cis e trans encontradas nesse percurso junto ao CnaR eram em sua grande maioria mulheres negras, jovens, com vínculos familiares fragilizados e trajetórias de exclusões e violências que repercutiram para o processo de ida e permanência nas ruas. Entre as dificuldades cotidianas enfrentadas em decorrência da situação de vulnerabilização, as mulheres destacaram como demandas mais urgentes o acesso à alimentação, aos documentos e a espaços que possibilitassem dar conta de necessidades básicas, o que se agravava no período menstrual visto a dificuldade de acesso a locais e produtos que possibilitassem cuidar da higiene íntima. Outra problemática recorrentemente trazida foi a negação quanto ao direito à maternidade, mediante a perda da guarda dos filhos, o que era responsável pela intensificação de processos de sofrimento. Realidade que se relaciona a compreensões estigmatizadoras e discriminatórias de que não existe por parte dessas mulheres a capacidade para exercer a maternagem.
Era comum encontrar essas mulheres pela cidade em grupos e/ou junto a pessoas com quem haviam estabelecido relações afetivas. Essas redes de sociabilidade que se constituíam muitas vezes colaboravam para dar conta de demandas mais imediatas, principalmente em locais mais afastados dos serviços socioassistenciais. Como também, muitas vezes possibilitavam uma maior proteção a essas mulheres frente as diferentes formas de violência a que estão expostas na rua, entre elas violência física, sexual, psicológica e material.
Algumas das relações afetivas estabelecidas são elas mesmas atravessadas por diferentes formas de violência, mas ainda assim são trazidas enquanto possibilidade de segurança frente aos riscos a que essas mulheres podem estar expostas no espaço da rua, retratando a complexidade desse fenômeno. Em algumas situações mais graves, em que mulheres sofrendo violência dentro do relacionamento queriam dialogar com profissionais do CnaR, esse diálogo era dificultado pela presença da pessoa que cometia as agressões. Nos casos em que as mulheres buscavam os profissionais do serviço, eram ainda frágeis as possibilidades de articulação com outras redes que possibilitassem a elas saírem efetivamente da situação de risco em que se encontravam, evidenciando a inabilidade da rede de saúde e socioassistencial para lidar com essa demanda.
A respeito das poucas mulheres em situação de rua acompanhadas pelo CnaR que circulavam sozinhas pela cidade, era comum um discurso por parte dos profissionais de outros serviços que elas eram “agressivas”, não discutindo-se sobre o significado desses comportamentos e a necessidade de defesa mediante as especificidades apresentadas. Entre elas estava Rosária, mulher em situação de rua nomeada constantemente pelos serviços como “agressiva”, até que seu corpo queimado foi encontrado, tempos depois, já sem vida, sendo enterrada como indigente. Só depois de meses de pistas incertas, mediante a angústia de familiares e de profissionais com quem possuía vínculo, principalmente do CnaR, soube-se sobre a morte de Rosária.
Essa realidade diz da dimensão política da vida de pessoas em situação de rua, e mais especificamente das mulheres em tal contexto, mediante o processo de desumanização sofrido enquanto reflexo da colonialidade e do racismo que reverbera na ida dessas mulheres para as ruas e permanência nelas. Como também, na não construção de políticas efetivas, reforçando processos de segregação e extermínio desses corpos. Apesar de todo esse contexto de negação de direitos e dos agenciamentos que regem o espaço citadino, a cidade segue sendo a todo tempo modificada pelas pessoas em situação de rua, sendo solo para o desdobramento das mais diversas histórias de vida, com a construção de espaços de afeto e solidariedade.
Considerações finais
A partir do exposto, destaca-se a importância de perceber as diferentes formas de organização da população de rua na cidade, olhando para como as mulheres forjam suas permanências e impermanências no espaço. Como borram fronteiras que estabelecem entre o público e o privado no espaço citadino, inaugurando novas espacialidades, que, embora visualmente semelhantes, compõem-se de diferentes interações.
Processo esse fundamental para construir coletivamente, no âmbito das políticas públicas, estratégias que se constituam a partir de uma ética que diga do tempo-espaço e multiplicidade que conforma o espaço da rua. Nesse sentido, é fundamental incluir diferentes protagonismos e apostar em modos de fazer política que privilegiem o estar junto, considerando efetivamente a complexidade desse fenômeno e dos marcadores sociais que o atravessam, bem como as especificidades das demandas apresentadas pelas mulheres que se encontram nesse contexto.