Introdução:
A Atenção Básica à Saúde (ABS) é considerada a estratégia central para a organização dos sistemas de saúde, pois sua disposição territorial possibilita os primeiros contatos dos usuários com a rede de saúde bem como a coordenação do cuidado e acompanhamento longitudinal das pessoas. Ainda que existam diversas configurações adotadas pela atenção básica no Brasil, decorrente das inúmeras diferenças regionais, um ponto que parece ocorrer de forma comum entre todas os locais é o acompanhamento de pacientes com condições crônicas de saúde. Durante a pandemia, a gestão dos sistemas de saúde priorizou o atendimento de sintomático respiratórios, reorganizando fluxos de atendimento a dificultando o acesso a consultas de pessoas com demandas não-COVID. Além disso, várias outras medidas adotadas para o controle da transmissão do vírus causador da COVID-19, como distanciamento social, proibição de práticas de atividades físicas em locais públicos, restrição de viagens, dificuldade de acesso a alimentação adequada, podem ter contribuir para a piora do controle dos casos crônicos. Sabe-se que as pessoas com condições crônicas de saúde apresentam maior risco de desenvolver formas graves de COVID-19 especialmente quando apresentam descompensação ou agravamento de seus quadros de base. Além do que, o agravamento dos casos associados ao acompanhamento irregular podem contribuir para uma demanda excessiva para a atenção básica após a pandemia . Desta forma, o objetivo desta pesquisa é analisar como ocorreu o cuidado às pessoas com condições crônicas de saúde pela atenção básica em duas regiões de saúde do estado de São Paulo durante a pandemia do COVID-19.
Metodologia
Trata-se de uma pesquisa qualitativa do tipo estudo de casos múltiplos realizada em seis municípios pertencentes a duas regiões de saúde do estado de São Paulo. Foram realizadas 29 entrevistas com gestores e profissionais da saúde, gravadas em meio eletrônico e posteriormente transcritas e, então, codificadas através do software ATLAS.TI por pelo menos dois pesquisadores do grupo de pesquisa. Os principais achados foram analisados coletivamente em reuniões do grupo de pesquisa realizados de forma virtual e embasaram a análise apresentada neste resumo. O período de coleta de dados ocorreu entre novembro de 2021 e dezembro de 2022. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UNIFESP e conta com financiamento da FAPESP (PPSUS-2020). Este resumo apresenta os resultados parciais desta pesquisa.
Resultados
Houve uma tentativa em parte dos municípios para manter o atendimento às pessoas com condições crônicas de saúde, em especial no início da pandemia. Para permitir o atendimento, ocorreu a reorganização dos fluxos de atendimento, com locais e equipes exclusivas para sintomáticos respiratórios e pacientes com COVID-19, com a intenção de reduzir a chance de contágio dos demais pacientes. Nestes locais, houve a diminuição do número de consultas eletivas para amentar o intervalo de tempo entre elas e desta forma permitir a correta higienização dos locais de atendimento, além de diminuir o fluxo de pessoas no mesmo momento. De forma semelhante, nas atividades coletivas, os grupos foram reorganizados com um menor número de pessoas para garantir o distanciamento social. Com o aumento do número de casos de pacientes com COVID-19 e sintomáticos respiratórios houve a necessidade de reduzir e por fim suspender o atendimento aos pacientes crônicos. Os pacientes que realizam acompanhamento de condições crônicas foram orientados a procurar atendimento apenas se houvesse alguma intercorrência ou agudização de suas doenças. Ainda que algumas unidades ofertassem consultas para pacientes com condições crônicas, percebe-se a diminuição da procura dos serviços da ABS pelos pacientes. Esta diminuição é atribuída ao medo da contaminação pelo COVID-19: "a gente não parou os atendimentos, porém, a demanda durante a pandemia, desses atendimentos, diminuiu, até pelo medo do paciente de procurar," D08. A diminuição da procura por atendimento também afetou outros grupos populacionais como gestantes que realizavam o pré-natal e até mesmo consultas de puericultura. Parte da relutância e medo é atribuído à grande influência da mídia que enfatizava os riscos de contaminação e a necessidade de permanecer em casa: "Porque era o medo né? Se você tem lá um meio de comunicação, falando 24 horas na sua cabeça hashtag fica em casa, se não se vai morrer, então, é, dificilmente né [...]" D17. Os gestores e profissionais também relatam que é perceptível o agravamento dos pacientes com condições crônicas em decorrência da perda de acompanhamento, com aumento da procura por atendimentos em unidades de emergência e superlotação desses serviços. Passado a parte mais intensa da pandemia, os profissionais reavaliam que a suspensão do atendimento pode ter sido uma atitude equivocada: “a gente olhando para esse cenário hoje né, a gente vê que talvez não, não, não tenha sido a melhor escolha, mas também a gente não tinha muita escolha né [...] " D17”. Porem justificam esta decisão pela falta de profissionais e estrutura de atendimento além da ideia inicial de que a suspensão dos atendimentos seria algo mais rápido e passageiro. As tecnologias de informação e comunicação (TIC) foram amplamente utilizadas para o cuidado dos pacientes crônicos. Em vários locais, as equipes das unidades básicas realizavam consultas através de telefone, aplicativos de mensagens ou até mesmo prestavam orientações por redes sociais. Os gestores relatam que o atendimento através das TIC foi facilitado na ABS, porque neste ponto da rede há uma maior aproximação entre equipes e usuários, permitindo que as equipes conhecessem melhor os pacientes. Para que os pacientes com doenças crônicas continuassem tendo acesso aos medicamentos necessários ao seu tratamentos, a ABS manteve aberto as farmácias para a entrega de medicamentos. Para diminuir a necessidade dos pacientes buscarem atendimento para renovar as receitas de medicamentos de uso continuo, várias equipes da ABS ampliaram a validade da receita e também disponibilizaram uma maior quantidade de medicamentos aos pacientes. Outra estratégia adotada, foi a renovação das receitas dos usuários crônicos pelos médicos assistentes sem a necessidade de consulta presencial, por meio da revisão dos prontuários das unidades.
Considerações Finais
A suspensão dos atendimentos das pessoas com condições crônicas de saúde que realizavam acompanhamento na ABS resultou no agravamento e descompensação dos casos desencadeado maior procura em unidades de urgência e emergência. Percebe-se também um aumento da demanda da atenção básica após o fim da parte mais intensa da pandemia pelo retorno dessas pessoas às unidades de saúde além da maior necessidade de consultas pelo agravamento dos casos. Estratégias implantadas como o uso das TIC e alterações na assistência farmacêutica podem ter contribuído para o controle das doenças crônicas de parte da população estudada. Percebe-se a necessidade da elaborações de estratégias para manter o atendimento dos pacientes com condições crônicas de saúde para conciliar o atendimento dessas pessoas com o aumento da demanda decorrente de agravos epidêmicos.