Apresentação: O trabalho aborda a experiência da uma tutora e quatro residentes de um Programa de Residência em Saúde Mental Coletiva no apoio ao cuidado psicossocial em um Alojamento para desabrigados das enchentes que devastaram bairros de Porto Alegre e muitos municípios do estado do RS, em maio de 2024, buscando refletir sobre o processo de construção da oferta de cuidados em saúde e atenção psicossocial aos acolhidos em Alojamentos provisórios. Especialmente, nos dedicaremos à discussão do que se refere aos modelos de atenção oferecidos; aos conceitos de coletivo e de trabalho em equipes operados no contexto do desastre; e a presença/ausência do Estado como operador das políticas públicas envolvidas. Desenvolvimento: Segundo a Defesa Civil do RS, em balanço apresentado em 12/05/2024, 447 cidades do RS foram atingidas pelos efeitos das chuvas ocorridas entre o fim de abril e o mês de maio deste ano, produzindo efeitos diretos sobre as vidas de 2.115.703 pessoas, sendo 538.743 desalojados de suas casas e estando 81.200 pessoas abrigadas em Alojamentos temporários, instalados e geridos por entidades públicas e privadas em diferentes municípios do Estado. Desde o início da movimentação civil demandada para oferecer apoio ao desalojados, nos primeiros dias de maio, residentes do Programa de Saúde Mental Coletiva da UFRGS, acompanhadas de uma das tutoras do programa, se inseriram em espaços de alojamento de diferentes territórios da cidade, articulando-se às equipes de saúde, saúde mental e Assistência Social que passaram a oferecer variadas formas atenção em cada espaço. O objetivo era contribuir para delinear as estratégias de apoio psicossocial a serem organizadas a partir das demandas que se produziam no cotidiano dos alojamentos, com foco nos “primeiro cuidados psicológicos”. Atentas aos atores e jogos de forças que se engendraram a partir da eclosão de um desastre de tal proporção, bem como os discursos e conceitos da saúde (e saúde mental) operados neste contexto passamos a refletir sobre os modos como esta experiência reverbera na formação de profissionais de saúde inseridas em um Programa de Residência em Saúde Mental Coletiva. Resultados: A partir da participação no trabalho de acolhimento das demandas de cuidado em saúde/saúde mental/assistência social no cotidiano dos contextos de abrigamento, nos deparamos com a emergência da noção de saúde somente como ausência de doença, limitando a atenção à saúde e saúde mental à identificação de diagnósticos clínicos e de transtornos mentais já estabelecidos e ao manejo de situações de exacerbação afetiva, entendidas como “crises” a serem manejadas, visando sua dissipação e controle. Este modelo de atenção produzia a fragmentação dos sujeitos acolhidos, seja pela separação do trabalho da saúde e da saúde mental e assistência social, com a oferta de atendimento por setores e equipes distintas, em atuações desarticuladas e sem compartilhamento de estratégias de cuidado que envolviam uma mesma pessoa ou família; seja pela dificuldade de mobilização da noção de cuidado em rede, elemento fundamental para a articulação e seguimento do cuidado das pessoas atingidas, na perspectiva do cuidado longitudinal a ser oferecido em situações de emergências e desastres. Essa oferta de atenção fragmentada levava a reprodução da lógica ambulatorial e de modelo médico centrado no espaço dos alojamentos, bem como, ao predomínio da medicalização e medicamentalização como estratégia para lidar com os afetos e sofrimentos mobilizados pela situação vivida no desastre decorrente das enchentes. Ainda, como efeitos deste modelo de cuidado, a noção de coletivo se fragilizava ou mesmo era vivida como uma ameaça ao modelo estabelecido (por exemplo, quando se pupunha a realização de Rodas de Conversa com os/as abrigados) dificultando a relação entre a população abrigada (com a reprodução de violências estruturais como o racismo e a xenofobia), como desta com o coletivo de trabalhadores da saúde e assistência social que se encontravam no espaço (por haver uma necessidade de repetidamente retomar as narrativas de sofrimento para diferentes pessoas) e entre os trabalhadores envolvidos com o cuidado (se que viam muitas vezes impotentes pela novidade que e experiência produzia). A noção de trabalho em equipe integrado, que se caracteriza pelo trabalho coletivo na relação recíproca entre as intervenções técnicas e a interação dos profissionais, se perde e passa a operar a modalidade de equipe agrupamento, em que ocorre a justaposição das ações e o agrupamento dos agentes. Sem a articulação das ações e dos profissionais envolvidos no cuidado fomenta-se a duplicidade de informações, diagnósticos e intervenções sobre uma mesma situação, ao mesmo tempo em que se negligencia o cuidado adequado sobre outras. O último elemento de análise que pretendemos produzir, refere-se aos efeitos da ineficiência do Estado, na figura da gestão municipal, na gestão dos espaços de Alojamento provisório, vivenciadas pelas autoras no período em que estiveram vinculadas ao trabalho nesses espaços. Tendo a gestão municipal delegado a terceiros a gestão dos Alojamentos, através da contratação de uma organização privada (OCIP), ou mesmo da delegação à parceiros voluntários de diferentes configurações sociais, o Estado se mostrava ausente do cotidiano, parecendo preferir ressaltar o caráter voluntário inerente a atenção oferecida no contexto de emergências e desastres (ouvia-se muito falar no “nós por nós” nos corredores do alojamento). Assim, não se produziu a ação do “Estado vivo em ato”, parafraseando o conceito de “trabalho vivo em ato”, tão importante para o cuidado em saúde, impedindo-se o sentimento de proteção que o Estado, através da ação das políticas públicas, poderia produzir na população que perdeu suas casa, seus objetos, suas lembranças importante e, muitas vezes pessoas ou animais queridos, gerando-se um sentimento de desamparo, com consequências nefastas para a saúde mental. Conclusão: Ressalta-se como considerações relevantes dessa experiência, a importância do vínculo, e da organização coletiva no compartilhamento das mesmas noções de saúde e de atenção psicossocial, do trabalho em rede e do conceito ampliado em saúde, posto em prática no contexto emergencial, entendendo que as perdas materiais, o acesso a direitos, moradia, alimentação, território estão diretamente associadas ao processo saúde/doença. Sendo a saúde um direito de todos e dever do Estado, conforme estabelece a nossa constituição, fica evidente a complexidade dos elementos que atravessam o contexto de desastres e os efeitos na produção do cuidado. A importância do trabalho intersetorial e em rede, coordenados pela gestão municipal, através da ação das políticas públicas, é fundamental para a oferta de possibilidades de construção de estratégias de elaborações e enfrentamentos a curto, médio e longo prazo, dos sofrimentos produzidos. Ainda, entendemos a potência da inserção das residentes, enquanto profissionais em formação para atuação no Sistema Único de Saúde, com acompanhamento docente assistencial, em ações de enfrentamento às situações de emergências e desastres. Através desta experiência pudemos contribuir com nossas “caixas de ferramentas” teórico-práticas e, ao mesmo tempo, nos desafiamos a ampliá-las, permitindo-nos inventar outras formas de funcionar, que sirvam melhor às novas situações nas quais sejamos convocados a agir, pela força vital do desejo ou pela responsabilidade profissional e com o SUS.