A saúde sexual e reprodutiva das mulheres ribeirinhas que optaram pela laqueadura tubária é um tema complexo e multifacetado, inserido num contexto de desigualdades de raça, classe e gênero. É sabido que a luta pelos direitos sexuais e reprodutivos também é uma forma de combate à opressão, a exploração e outras formas de violência. Neste estudo, objetiva-se compreender as perspectivas de mulheres ribeirinhas residentes em Nova Olinda do Norte, município do Estado do Amazonas acerca da cirurgia de laqueadura realizada como planejamento reprodutivo. Dessa forma, a presente investigação tem como objetivo refletir a partir das narrativas dessas mulheres sobre a laqueadura, permitindo uma compreensão mais profunda e sensível diante das realidades enfrentadas por elas. Ao capturar as suas vozes, histórias e experiências, é possível revelar as nuances e as complexidades que envolvem as suas decisões reprodutivas, bem como os efeitos que esses procedimentos têm em suas vidas. Conhecer essas perspectivas é fundamental para identificar lacunas no sistema de saúde, compreender os fatores socioculturais que influenciam suas escolhas e melhorar as políticas públicas de saúde reprodutiva. Trata-se de um recorte de uma pesquisa de mestrado, de cunho qualitativo, realizada com 12 mulheres em idade reprodutiva e que foram submetidas a cirurgia de laqueadura no âmbito da saúde pública. Para este estudo serão analisados dois casos para que que possamos refletir sobre percepções e consequências da laqueadura para essas mulheres.
O município de Nova Olinda do Norte, está localizado acerca de 132 km de Manaus, capital do Estado do Amazonas; compreende uma população estimada no ano de 2022 pelo IBGE de 27.062 habitantes. O município foi escolhido devido à sua localização geográfica de baixa densidade demográfica e diante da presença de famílias tradicionais ribeirinhas. O acesso a essas mulheres foi realizado por meio da técnica bola de neve e a coleta de dados envolveu visitas às residências dessas mulheres, onde foram realizadas entrevistas em um ambiente familiar e confortável para elas. Muitas relataram ter tomado a decisão de realizar a laqueadura com base em informações insuficientes ou equivocadas, muitas vezes fornecidas por profissionais de saúde que não detalharam os riscos e as consequências do procedimento. Algumas mulheres mencionaram a pressão de parceiros ou familiares como fator decisivo para optar pela laqueadura.
A pesquisa foi guiada pela epistemologia da diferença e pelos princípios da interseccionalidade, com o objetivo de compreender como diversas formas de opressão se interconectam e afetam a vida dessas mulheres. A metodologia utilizada é baseada em entrevistas narrativas, orientadas pela epistemologia da diferença e pelos princípios da interseccionalidade, com o objetivo de compreender como diferentes formas de opressão interconectam-se e afetam essas mulheres.
As barreiras geográficas representam um obstáculo significativo para o acesso das mulheres ribeirinhas aos serviços de saúde. A distância das comunidades ribeirinhas dos centros urbanos e a falta de uma infraestrutura adequada dificultam o acesso aos cuidados médicos, que deveriam ser de qualidade, mas não atendem às necessidades específicas dessa população, que, muitas vezes, não compreende a linguagem médica, técnica e academicista. Essas barreiras geográficas são agravadas pela falta de transporte e pelos altos custos envolvidos, tornando a procura por atendimento médico um processo oneroso e, muitas vezes, impraticável.
A interseccionalidade mostra como diferentes grupos sociais se relacionam em situações específicas, criando experiências únicas de opressão e privilégio. No caso das mulheres ribeirinhas, suas experiências de saúde são moldadas por fatores como raça, classe, gênero e localização geográfica. Historicamente, a saúde dessas populações tem sido negligenciada, resultando em um sistema de saúde que, em geral, não atende às suas necessidades específicas.
Além das dificuldades de acesso físico, a falta de informação adequada sobre a laqueadura tubária é uma questão crítica. Muitas mulheres ribeirinhas realizam a cirurgia sem uma compreensão completa dos seus efeitos e implicações. A falta de comunicação eficaz entre os profissionais de saúde e os pacientes, aliada às barreiras linguísticas e culturais, resulta em medo e insegurança em relação à realização de cirurgias. Dessa forma, a troca de experiências entre mulheres da comunidade é uma fonte indispensável de apoio e conhecimento, muitas vezes mais confiável do que as explicações fornecidas pelos profissionais de saúde.
A partir dessa investigação identificamos que o colonialismo continua a exercer influência nas práticas de saúde, perpetuando um modelo biomédico que, muitas vezes, ignora os saberes e práticas tradicionais das comunidades ribeirinhas. Esse modelo eurocêntrico de saúde não considera as realidades culturais e sociais das mulheres, perpetuando as desigualdades.
As entrevistas revelaram que a insegurança e o medo em relação à laqueadura são comuns entre as mulheres ribeirinhas. A maioria relatou que se sente mais segura e confiante ao conversar sobre suas experiências com outras mulheres que já passaram por cirurgias do que ao conversar com profissionais de saúde. Esse dado demonstra a relevância das redes de apoio comunitários e a necessidade de um sistema de saúde que reconheça e valorize essas relações.
A perspectiva teórica, fundamentada nos estudos decoloniais de Mignolo, enfatiza a necessidade de uma postura epistêmica que valorize os saberes locais e tradicionais, promovendo novas formas de conhecimento e práticas de saúde que desafiem à hegemonia eurocêntrica. Nesta situação, a decolonialidade é vista como uma mudança profunda e abrangente nas práticas de saúde, capaz de promover um atendimento mais justo, inclusivo e culturalmente sensível.
A decolonização do modelo biomédico de saúde implica reconhecer e valorizar os saberes tradicionais e práticas de cura das comunidades ribeirinhas. Isso requer uma mudança profunda nas práticas de saúde, estabelecendo um diálogo verdadeiro entre os conhecimentos científicos e tradicionais. A implementação de políticas públicas que respeitem e integrem as especificidades culturais e sociais dessas comunidades é crucial para assegurar um atendimento de saúde mais justo e eficaz.
Os resultados mostraram a necessidade urgente de políticas públicas para abordem as barreiras geográficas e a falta de informação. Além da implementação de unidades básicas de apoio e de estratégias de telemedicina, é relevante reforçar os serviços de saúde nas comunidades ribeirinhas e promover campanhas educativas como passos importantes para melhorar o acesso e a qualidade do cuidado de saúde para essas mulheres, cuidado este que, ao invés de ser implementado, deve ser construído em conjunto com aqueles que receberão o serviço.
Mediante a isso, este estudo enfatizou a relevância de se ter uma perspectiva interseccional ao analisar a saúde sexual e reprodutiva das mulheres ribeirinhas a partir da percepção delas sobre o procedimento. Portanto, a decolonização do modelo biomédico é indispensável para que o sistema de saúde seja mais inclusivo e equitativo, respeitando e valorizando os saberes e práticas tradicionais dessas comunidades. Além disso, é crucial criar políticas públicas que superem as barreiras geográficas e a falta de informação, garantindo que todas as mulheres tenham acesso a cuidados de saúde de qualidade e a informações precisas e compreensíveis sobre seus corpos e opções de saúde reprodutiva.
A luta pela justiça social e pelos direitos humanos das mulheres ribeirinhas requer uma abordagem integrada que considere as múltiplas dimensões da opressão e promova a participação ativa dessas comunidades na elaboração e execução das políticas de saúde. Somente dessa forma será possível chegar a um sistema de saúde equânime que seja inclusivo e justo, sem distinção de localização geográfica ou contexto social.