Apresentação
Como refletir sobre práticas pedagógicas voltadas à formação de operários/as/es do cuidado sustentadas na potência do encontro e em um agir micropolítico? – eis a questão-bússola, que se desmontou e remontou em arranjos diversos pela estrada percorrida em um Estágio de Pós-Doutorado (15/08/2022 a 14/08/2023), acompanhada por Emerson Merhy, no Programa de Pós-graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social/EICOS (UFRJ).
Pretendo compartilhar elaborações teórico-epistemológicas urdidas pelos efeitos do processo de desmontagem de minha persona docente, operada como uma cartografia da minha atuação em práticas formativas de profissionais de saúde/saúde mental, desde 2008, na Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), no semiárido nordestino.
Pude revisitar e avaliar minha trajetória profissional, situada na interface entre Psicologia, Saúde, Educação e Políticas Públicas, com foco na dobra formação/produção do cuidado, na perspectiva de produzir um corpo e formar ação para tomar as micropolíticas do sensível e o exercício contracolonizador como valores axiais.
Desenvolvimento
Na revisitação cartográfica, abri-me a outros prismas sobre o vivido, atenta às tatuagens já inscritas no corpo e às novas que se talhavam. Recorri à arte, no sentido lato de invenção/criação, como ferramenta para encontros, e a um exercício contracolonizador, degustando saberes ancestrais como fontes para ampliar as compreensões de saúde, vida e cuidado.
A bússola poderia se desgovernar e levar a lugares impensados, tendo eu sustentado a abertura, interessada em jogar o corpo na dança dos encontros. Assim foi. Na pesquisa delimitada, ressaltou-se uma zona de interseção entre interesses cultivados – o ofício docente, os processos formativos de profissionais de saúde e a produção de conhecimento e intervenção (extensão) conectada às políticas públicas. Situei-me em trânsito, em múltiplas encruzilhadas, em que cada mirada e cada ato se engravidava a partir da perspectiva deleuziana dos intercessores. Casacos e tatuagens seguiram revestindo meu corpo, como a Arlequim, alegoria de Michel Serres para sentipensar processos de transmutação próprios de uma educação libertadora.
Como pontos de sustentação do roteiro imaginado, disparado pela questão-bússola, as experimentações produziram potência a partir da interlocução com autores do campo do teatro, como Dario Fo, Augusto Boal e Antonin Artaud. Ampliei minha conexão com o campo das artes circenses, a partir de um papo com Hermínia Silva, interessando-me por conhecer mais as fronteiras, e não os muros, entre as diversas linguagens. Criei oportunidades de viver o que experimentações teatrais podem produzir em um corpo, mergulhando em oficinas teatrais do grupo “Tá na rua”, coordenador por Amir Haddad.
Ampliei meu interesse por saberes dos povos originários dessa terra afroindígena, em especial no encontro com o pensamento de Ailton Krenak e Nego Bispo. Haviam sido fundamentais as provocações de estudantes negras na graduação e programas de residência, despertando-me à urgência de perceber o equívoco e limitação de dados conhecimentos centrados em uma visão eurocêntrica.
A escrita de diários cartográficos foi recurso fundamental, pela proposição de colocar efeitos percebidos em exposição, em redes de conversação. Foram muitos encontros e conversas, no Brasil e além-mar, matéria-prima farta reflexões sentipensantes.
Compus-me como Barbara-Arlequina, transmutada em Barbekina, apresentada por meio da opereta de uma formação sensível para a produção do cuidado. “Barbekina In Process”, título da obra-compostagem-mosaicada, seria uma aula-espetáculo? uma palestra-performance? uma ação performática? uma ferramenta pedagógica? Ou tudo isso junto?
Sua produção constituiu o fruto mais desafiante do pós-doutorado, tendo a coragem para a gestação se nutrido a partir das circulações, sem uma preocupação com o “para que”: simplesmente me dispus a construir modos de comunicar o que vibrava em mim, tendo precisado recorrer ao apoio de um diretor teatral para construir modos de visibilidade e dizibilidade às intensidades afetivas que percorriam (e percorrem ainda) meu corpo – com e sem órgãos.
Resultados
Ao partir, vislumbrava no horizonte uma formação que pre-para, ou seja, que antecipadamente permite reconhecer parar como um valor, tanto em processos de aprendizagem na graduação quando na prática profissional. Parar sobretudo para sentir, escutar, olhar, experimentar, como indica Larrosa: tudo muito devagar, na contramão dos tempos que correm, que impedem o pensamento e ativam sentimentos de tristeza.
Voltei ao sertão mais turbinada para o exercício docente, mais disposta a disputar sentidos para a formação, para além de um tecnicismo, voltado à aplicação de procedimentos, em contraponto à medicalização do social e patologização da vida. Uma tal formação demanda experimentações que valorizam as intensidades, em modos marcados pela “produção coletiva”, pelo estar-com, para cuidar com outros/as/es. Práticas pedagógicas fundadas no cuidado enquanto campo comum, em espaços de encontro e de criação, sem prescindir da prudência.
A circunscrição de perguntas que me atravessavam e me moveram ao pós-doutorado me colocava em diálogo direto e profícuo com a aposta da micropolítica do trabalho vivo em ato na saúde, como discutido na produção de Merhy. Eu-Arlequina, agora Barbekina, pude reafirmar a fertilidade de meu encontro com a perspectiva micropolítica: um ancoradouro para experimentar outros casacos e seguir em trânsito, disposta a correr perigo e apostar nas chances de alargar a capacidade de operar com a prática docente como dispositivo ético-político, e com coragem de fazer o convite a outros/as/es.
Ampliei a porosidade para perceber, nos contextos de formação e de produção do cuidado, onde e como as tensões operam, para construir modos de lidar, e não de eliminá-las. Sustentar a tensão demanda sempre reposicionamentos e um grau acurado de invenção, criação. Arte.
Como frutos do processo, além da opereta já destacada, enfatizo a escrita de alguns textos (persistindo a sensação de estar fecundada em multiplicidades, com muito ainda por escrever), e realço que me tornei uma outra mesma Barbara, com reconhecimento da expansão do meu corpo (e da potência de agir) e do engravidamento dos meus modos de ser docente-atriz. As salas de aula, engravidadas, desde o retorno do pós-doc, tem sido cenários para um permanente processo de ativação do sensível e de exercício contracolonizador, transformadas em laboratórios vivos.
Como maior efeito, indico a aposta contínua nas experimentações pedagógicas, guiadas pelo mantra “produzir mais vida na vida vivida”, palavras pulsantes e vibráteis, marcadas na pele, pela aproximação com Emerson, que defende ser esta a pérola da produção do cuidado.
Considerações finais
As reverberações da desmontagem, prenhe de afecções e afetos, seguem vibrando em mim e pedindo passagem no meu corpo, em performances como docente no sertão. Sigo fortalecendo a compreensão de que, sendo professora/extensionista/pesquisadora, sou, axialmente, uma vivente-agente no mundo, na condição de educadora.
Depois dos intensivos périplos, meu corpo, posto em circulação, conquistou uma condição outra para seguir a viagem em “meu canto”, com uma maleta mais turbinada. A rigor, essa maleta é o meu próprio corpo, transmutado por tudo o que foi vivido nas intensidades de mais esta etapa formativa. Meu corpo sabe que pode... Quiçá se trate de outro sistema cognitivo instaurado pela força da abertura ao porvir e do acaso dos encontros, em seus arranjos rizomáticos, como indicado por uma das minhas potentes interlocutoras, Monica Rocha.
Reafirmei, aprofundando um “saber de experiência”, que prática docente constitui ferramenta política para transformação social, vislumbrando justiça social, substantivando-se por experimentações conectadas ao mundo da vida, seja em salas de aula (as mais diversas), em projetos de pesquisa ou de extensão. No meu caso, esse mundo da vida está em um pedaço do sertão, entre Pernambuco e Bahia, no nordeste do Brasil, país que sigo re-descobrindo como terra afro-indígena.