Apresentação: A Atenção Primária à Saúde (APS) apresenta uma lógica de inserção, reconhecimento e articulação territorial que a distingue dos demais âmbitos de atenção do Sistema Único de Saúde (SUS), sendo a que melhor se aproxima da realidade cotidiana da população. Conforme disposto na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), são diretrizes do SUS e da Rede de Atenção à Saúde, operacionalizadas na APS, dentre outras: a ordenação da rede, coordenação do cuidado, participação da comunidade e população adscrita. Tais diretrizes corroboram para uma lógica de territorialização a partir da ótica do cuidado centrado na pessoa. Nessa perspectiva, a Terapia Ocupacional (TO), profissão que carrega como principal objeto de atuação as ocupações humanas no cotidiano, ao se inserir no contexto da APS, traz uma gama de conhecimentos de núcleo que se acrescentam às construções coletivas do campo. A aproximação com a realidade de vida do usuário, possibilitada pela organização do serviço, dispensa aos terapeutas ocupacionais a necessidade de simulações de treinos de atividades e de práticas realizadas no cotidiano, como ocorre na atenção especializada. A imersão no ambiente amplia as possibilidades do raciocínio terapêutico ocupacional e disponibiliza ferramentas eficazes, considerando o contexto de vida diária a ser trabalhado. Experiências de terapeutas ocupacionais no contexto territorial no Brasil são datadas da década de 70, contudo, até então, os estudos concentram-se prioritariamente nas práticas realizadas, além de reflexões teóricas sobre o tema. É restrito o esforço investigativo para a compreensão das repercussões que a aproximação com a realidade do usuário traz para o raciocínio profissional e condução terapêutica nesse contexto, especialmente no cenário baiano. Em vista disso, o objetivo deste trabalho é compreender, segundo a ótica de terapeutas ocupacionais que atuam no contexto da APS na Bahia, as influências da atuação territorial na condução do Projeto Terapêutico Singular. Desenvolvimento do trabalho: O estudo qualitativo em curso tem como fonte de investigação narrativas de casos complexos acompanhados por terapeutas ocupacionais em equipes e-Multi ou Consultórios na Rua (CnR) de municípios diversos do estado da Bahia. Será considerado para a pesquisa o período de atuação das profissionais nos últimos quatro anos até o momento presente, abordando a construção do raciocínio profissional e as articulações realizadas entre equipe, serviço, usuário e território. Até o momento, foram realizadas duas entrevistas em modalidade virtual, sendo uma a entrevista piloto que não entrará na pesquisa, realizada com uma terapeuta ocupacional do estado de São Paulo, a fim de testar o instrumento semiestruturado a ser utilizado. São previstas o mínimo de quatro entrevistas, sendo possível, caso necessário, a realização de uma maior quantidade, considerando o critério de saturação. Resultados: Os resultados parciais se apresentam a partir de experiências de atuação em uma equipe de CnR na cidade de Salvador. Em meio às narrativas, existem especificidades quanto ao acompanhamento em saúde voltado à população em situação de rua, como a lógica do serviço que pressupõe abertura e respeito ao cenário e autonomia dos usuários. Com relação ao estigma social atribuído a essa população, muitas vezes, este se materializa como barreiras atitudinais a serem enfrentadas. Com isso, compreende-se uma grande necessidade de articulações intersetoriais para o desenvolvimento pleno da atuação junto ao usuário, em movimentos nos quais se faz presente a coordenação do cuidado. Salienta-se a importância não apenas das articulações intersetoriais com serviços de saúde e assistência social vinculados ao Estado - ainda que, por vezes, estas se apresentem desafiadoras em função do estigma supracitado - como também, articulações com espaços e organizações comunitárias locais. Tais conexões possibilitam a estimulação e fortalecimento do vínculo entre os sujeitos envolvidos - população adscrita, usuário, equipe e demais serviços -, o que pode reforçar noções de reconhecimento e pertencimento, garantindo de forma mais assertiva, a longitudinalidade do cuidado. Nesse cenário, a perspectiva da Terapia Ocupacional no que se refere ao cotidiano, que se expressa através do raciocínio profissional ao considerar a relação de interdependência sujeito-território-sociedade nas intervenções terapêuticas, possibilita um olhar diferenciado quanto às especificidades desse contexto. Por cotidiano, para terapeutas ocupacionais, compreende-se não apenas as repetições do fazer determinadas por uma rotina, mas os movimentos de influência bilateral entre as particularidades do indivíduo e a dinamicidade do contexto, onde o indivíduo torna-se parte de uma consciência coletiva que não pode ser negligenciada. Assim, diferente da atuação em outros contextos, os objetivos terapêuticos dos profissionais na APS não concentram-se apenas em perspectivas a curto prazo. As articulações necessárias, portanto, para um acompanhamento longitudinal eficaz, são mais assertivas quando presente a contribuição de núcleo da TO, possibilitando uma ressignificação desse cotidiano ao longo das intervenções propostas, a partir daquilo que apresenta-se mutável, tanto no particular quanto no coletivo. Contudo, as narrativas evidenciaram a complexidade da atuação territorial que, por outro lado, não pode ser romantizada, uma vez que, nessa lógica, se sobressaem as relações de poder presentes de forma direta ou indireta no território, a partir de interações dinâmicas e políticas estabelecidas, o que dificulta a condução do projeto terapêutico. Seja o lugar de autoridade ocupado pelo poder paralelo instituído em determinadas localidades ou o lugar de poder simbólico atribuído aos serviços e equipes que representam o Estado, como é o caso do CnR. De forma prática, é necessário saber adentrar no território, identificar sujeitos, suas influências no contexto e como dialogar com os poderes instituídos, abarcando a horizontalidade do cuidado e o estabelecimento de vínculos de confiança. Considerações finais: Conclui-se que, para a atuação na APS se faz necessária a compreensão da lógica territorial e suas influências, de modo que as estratégias traçadas possibilitem que o próprio território reforce os cuidados em saúde propostos para o acompanhamento terapêutico. Ainda, evidencia-se a potência que a Atenção Primária à Saúde carrega, considerando o cuidado integral. É necessária uma compreensão ampla do usuário e suas vivências reais para o alcance efetivo da integralidade do cuidado, não limitado a espaços terapêuticos controlados que não refletem o cotidiano. Nessa perspectiva, a Terapia Ocupacional, ao visar intervenções voltadas para o fortalecimento dos processos de autonomia e qualidade de vida dos indivíduos nos contextos de vida diária e subjetividades de cada um, tem sua perspectiva potencializada nesse âmbito de atenção. Dificilmente os casos apresentados nas narrativas evidenciadas, seriam cuidados com a assimilação ampliada necessária, se não fosse no contexto da APS.