Apresentação: Em dezembro de 2019, surgiu, na China, uma doença que foi denominada COVID-19, resultado da infecção pelo SARS-CoV-2, um novo coronavírus. Diante das altas taxas de transmissão do agente e na ausência de vacinas, uma série de medidas, recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) foram tomadas para evitar sua disseminação. Tais medidas compreendiam desde a lavagem correta das mãos e uso de máscaras, como aquelas voltadas ao coletivo, como as restrições de aglomeração de pessoas, trânsito entre cidades e estados e o cancelamento de eventos esportivos e sociais. Como as medidas, no Brasil, foram descentralizadas pelo Poder Público, compreendendo que os estados e municípios apresentavam autonomia de decisão das restrições que seriam impostas na localidade, nota-se que no interior dos estados, neste caso, de Minas Gerais, muitas prefeituras optaram pela construção de barreiras sanitárias. As barreiras pretendiam impedir o fluxo de pessoas entre as cidades, com profissionais atuando em todas as divisas, sendo rodovias ou estradas rurais, a fim de proteger a cidade e minimizar os riscos de contaminação. Dessa forma, o objetivo do estudo foi relatar a experiência Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e Agentes Comunitários de Endemias (ACE) que trabalharam nas barreiras sanitárias de uma cidade do interior do estado de Minas Gerais, durante a pandemia de COVID-19. Desenvolvimento: Trata-se de um relato de experiência de Agentes Comunitários de Saúde e de Endemias que atuavam em unidades básicas de saúde de um município no interior de Minas Gerias, mas, que durante um certo período da pandemia de COVID-19, foram deslocados para atuarem nas barreiras sanitárias. Nas barreiras os profissionais atuavam na divulgação de conhecimentos baseados em evidências científicas surgidas no contexto pandêmico, além de aferirem a temperatura e verificação da oxigenação daqueles que pretendiam entrar na cidade. Era realizada uma série de perguntas em um questionário pré-estabelecido, a fim de verificar sinais e sintomas da doença e a necessidade de realização do teste de reação em cadeia da polimerase com transcrição reversa (RT-PCR). Ainda, os profissionais precisavam verificar se as pessoas que precisavam se deslocar para entrar ou sair do município tinham autorização expedida pela prefeitura, por formulário online. Os profissionais atuaram nas barreiras sanitárias durante seis meses, sendo finalizada com a desativação das mesmas pelo início da vacinação. Resultado: Observou-se que, pelo município em questão estar inserido em uma microrregião de saúde, as barreiras foram importantes para auxiliar na organização do fluxo de atendimento intermunicipal de saúde, diminuindo a sobrecarga hospitalar de pacientes graves e internados, até mesmo de óbitos. Destaca-se, ainda, que foi primordial para que o município conseguisse se organizar internamente com insumos de equipamentos de proteção individual (EPI), materiais necessários para os atendimentos, testes e medicamentos, além de organizar os fluxos assistenciais e contratar profissionais de saúde, de recursos humanos, auxiliares de limpeza e outros. Por outro lado, nota-se que os profissionais que atuaram na barreiras sanitárias evidenciaram relações de poder dissimétricas por pessoas que se intitulavam como autoridades e que deveriam e queriam a qualquer custo passar pelas barreiras sem os procedimentos adequados, colocando-se como superiores e que se não conseguissem adentrar no município iriam tirá-los do cargo de trabalho, além das agressões verbais diariamente ouvidas por outros que acreditavam que as barreiras eram políticas e não por necessidade de saúde, que o vírus não existia e era uma invenção ou que não era nada grave como a mídia noticiava. Relata-se, também, aqueles que aceleravam o carro e não paravam nas barreiras, o que causava medo e risco de acidentes e atropelamentos dos trabalhadores. As humilhações por pessoas contrárias às medidas do governo eram constantes, além das brigas presenciadas ou vividas entre pessoas de um município e outro contra si ou contra os trabalhadores. Ainda, destaca-se o medo de contaminação com o vírus e de contaminarem a própria família por estarem em constante contato com diferentes tipos de pessoas e se tornarem, então, expostos diariamente ao vírus. Neste sentido, cabe ressaltar que o medo estava assolador no mundo, as notícias de mortes, hospitais lotados e escassez de testes, insumos e medicamentos, faziam com que os profissionais trabalhassem com uma carga emocional muito alta, pois encontravam-se em uma linha de batalha, entre o cumprir o papel de cuidar dos outros e o cuidar de si mesmo. Evidencia-se, ainda, que por ser uma região de Zona da Mata, durante os meses de inverno o frio e vento é constante, assim, ficavam à mercê das intempéries climáticas, tanto de dia quanto à noite, com relatos de tendas caindo e voando, deixando os mesmo sem local adequado de trabalho. Dentre tantas outras, a alimentação nas barreiras constituía-se como de difícil acesso, pois as marmitas com almoço, muitas vezes, demoravam a chegar, atrasava a entrega ou chegava fria. Por último, destaca-se que inúmeros profissionais, no munícipio em questão, receberam medalhas de atuação durante a pandemia, homenagens em redes sociais, honrarias e comemorações, mas os Agentes Comunitário de Saúde e de Endemias que atuaram nas barreiras sanitárias não foram lembrados durante as condecorações. Considerações finais: Os desafios vivenciados durante a pandemia foram inúmeros, desde o medo de ficar doente, disseminar o vírus, adoecer alguém da família, e até mesmo de morrer, ainda, para quem atuou como profissional de saúde, em um contexto tão desafiador e imprevisível, os desafios foram ainda maiores. Atuar em um mundo globalizado no qual as informações chegavam a todos os instantes, o bombardeio de informações falsas e sem evidência científica, levaram aos profissionais de saúde além da necessidade de contextualizar cientificamente as informações, a sofrerem abusos psicológicos, ameaças e desrespeito. No contexto daqueles que atuaram nas barreiras sanitárias, a falta de respeito, as humilhações vivenciadas pela realização do trabalho, as constantes pressões psicológicas sofridas, constituíram-se como desafios importantes do ser profissional de saúde. Importa, neste processo de experenciar os fatos vivenciados, compreender que apesar de tudo sofrido, os profissionais atuaram como propagadores de cuidar e agentes modificadores da realidade. Por outro lado, a experiência vivenciada reforça, apesar de tudo, uma valorização ambígua desses profissionais, neste caso dos Agentes Comunitários de Saúde e de Endemias, haja vista que foram convocados para atuarem na linha de frente, mas não foram mencionados quando houve celebrações públicas de honrarias e méritos.