(Des)silenciando as práticas de profissionais da saúde no contexto da violência contra a mulher: a racionalidade neoliberal como moduladora de cuidados em saúde

  • Author
  • Jeremias Campos Simões
  • Co-authors
  • Jeanine Pacheco Moreira Barbosa , Stephania Mendes Demarchi , Lorena Costa Soprani Pereira , Rafaela Ferreira Nascimento , Raila Souza Quinto , Silvanir Destefani Sartori , Maria Angélica Carvalho Andrade
  • Abstract
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    Apresentação: do que trata o trabalho e o objetivo:

    A violência contra a mulher é entendida nesse texto como fenômeno social, presente e recorrente nas diversas sociedades e extratos sociais. Nesse fenômeno, há ações de violência praticadas pelo sujeito homem, construído socialmente como superior, dominante, direcionada a mulher, construída como frágil e submissa. Esse discurso de hierarquia de gênero, modelam papéis e estereótipos, culminando em manifestações de violência contra a mulher. São discursos que, por vezes, legitimados por aspectos socialmente constituídos, como o patriarcado e a religião, levam a interpretação da mulher violentada e do agressor como algo natural e aceitável no contexto social. Da mesma forma, até mesmo sujeitos externos à relação de violência, toleram esse fenômeno como algo supostamente normalizado no meio social.

    Nesse contexto, a violência contra a mulher precisa ser reconhecida pela sociedade como severa violação dos direitos humanos. E enquanto problema de saúde pública, repercute em seu enfrentamento abordagens de trabalhadoras e trabalhadores da saúde atuantes em Unidades Básicas de Saúde (UBS), porta de entrada para toda a rede de atenção e cuidados de saúde a mulher violentada. As UBS estruturam-se com a finalidade de promover saúde à população do território onde se localiza, e na perspectiva de governança são geridas pela esfera municipal. Para o fortalecimento das UBS’s têm-se nas equipes de Estratégia de Saúde da Família (ESF) a efetivação da construção dos territórios em saúde, ferramenta fundamental para a aproximação entre o equipamento de saúde e a realidade sanitária local.

    Portanto, A ESF se estrutura como uma alternativa aos modelos assistenciais hospitalocêntricos, contrastando com os discursos biomédicos que se concentram exclusivamente no tratamento do corpo biológico, o que representa importante postura metodológica-assistencial para o enfrentamento do fenômeno multifatorial que é a violência contra a mulher. Além disso, as normativas reguladoras da ESF se opõem à gestão dos serviços de saúde que buscam conformidade com os princípios liberais, se opõe a economicização, a privatização, e a ênfase na gestão individual, preconizados pela racionalidade neoliberal. Para esse texto, adota o entendimento de ser o neoliberalismo estabelecido como governamentalidade empenhada em produzir sujeitos gestores de si, dos quais assumem a responsabilidade por suas vidas, e se adaptam aos preceitos de mercado. A partir desse contexto, esse estudo teve como objetivo: compreender as práticas discursivas de profissionais de saúde no enfrentamento a violência contra a mulher.

    Desenvolvimento do trabalho: descrição da experiência ou método do estudo

    Trata-se de estudo de abordagem qualitativa, na qual há busca por compreensão de objetos, analisando para isso, primordialmente a perspectiva de outros sujeitos. Os depoimentos analisados foram produzidos por meio de entrevistas semiestruturadas, com trabalhadoras e trabalhadores da saúde que atuam em Unidade Básica de Saúde (UBS) com equipe de Estratégia de Saúde da Família (ESF), localizada na região metropolitana da Grande Vitória, Espírito Santo, Brasil. A produção de dados ocorreu entre os meses de janeiro a junho de 2023, sendo as entrevistas individuais conduzidas nas instalações da UBS, gravadas e com garantia de anonimato para os participantes. O corpus de 97 páginas produzido durante as entrevistas, foi analisado a partir da técnica de Análise dos Núcleos de Sentido, com auxílio do software Iramuteq. Análise dos Núcleos de Sentido é conceituada como técnica que permite identificar o conteúdo latente e manifesto no corpus, embasados por seus temas constitutivos, tendo como objetivo identificar núcleos de sentido a partir das falas dos sujeitos. Respeitando as diretrizes de pesquisa envolvendo seres humanos, o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa sob parecer nº 5.640.771

     

    Resultados: os efeitos percebidos decorrentes da experiência, ou resultados esperados ou encontrados na pesquisa;

    Foram entrevistados 12 (doze) sujeitos de pesquisa, todos de profissão que exige nível superior, sendo: 03 Enfermagem, 01 Fonoaudiologia, 04 Medicina; 01 Odontologia e 03 Psicologia. A partir das falas dos sujeitos, foram identificados os núcleos de sentido, acerca da intervenção na violência contra a mulher. Esses núcleos deram pistas para a construção de ideias consoantes às características associadas ao neoliberalismo. As compreensões foram permitidas em razão da pesquisa inicial, propulsora da produção de dados, visar compreender a violência contra a mulher em contexto de acentuada propagação da racionalidade neoliberal. 

    Nesse contexto, foi evidenciado que as trabalhadoras e trabalhadores de saúde, no seu cotidiano de trabalho entendem a mulher violentada a partir da centralidade do trabalho. A mulher violentada, deve estar inserida no contexto de trabalho, diferente disso, a violência perde destaque e a ausência do trabalho ganha destaque no contexto de vulnerabilidade, a saber: [...] tem vários tipos, são mulheres que trabalham o dia todo, tem uma dificuldade de tirar um tempo para vir cuidar delas, tem também mulheres que não trabalham (E3). Mulheres que trabalham para sustentar a casa, mulheres assim que tem um vínculo conflituoso com o marido (E8). As falas evidenciam que a centralidade do trabalho é elencada em razão das mulheres serem primordialmente definidas pelo empenho em atividades laborais, além da associação entre ausência de trabalho e vulnerabilidade.

    A racionalidade neoliberal na tentativa de moldar e fabricar sujeitos conforme suas ordens e preceitos, absorve modos de ser e agir a partir da concepção de que é preciso gerir a si mesmo. Essa racionalidade parece coaptar os discursos das trabalhadoras e trabalhadores de saúde ao verificar a expressão de que “se oferece ajuda”, todavia para enfrentamento da violência sofrida pela mulher, é preciso “ela querer”. Assim, observa-se: “Quando tem esse problema (Violência contra a mulher) é oferecido (ajuda do serviço de saúde), mas só sai se quando ela quer (E2)”. Chama atenção que essa estrutura de discurso aparentemente está estruturada no vislumbre de que a mulher em situação de violência possui todos os recursos necessários para conseguir romper o ciclo de violência, e desta maneira basta oferecer ajuda. Demonstra a consolidação de cenário de potenciais riscos ao enfrentamento à violência contra a mulher, assim como aos demais problemas de saúde pública. O Estado promovedor de saúde tem sido progressivamente diminuído, pautado entre outros fatores, na premissa de que é maneira de ampliar a expressão das liberdades individuais. Baseia-se no pressuposto que os concidadãos estão conscientes e conseguem agir em prol do que é melhor para si. Resulta em cenário de que mesmo diante de situações de risco a integridade do sujeito, o Estado fica à espreita “oferecendo ajuda”. 

    Considerações finais;

    Quando a ESF adere aos princípios de mercado, indica possíveis disfunções em seu funcionamento enquanto aos princípios da política de saúde pública, impactando no processo de cuidar e nos sujeitos que necessitam de cuidados. A análise dos comentários acerca da violência contra a mulher e seu respectivo enfrentamento no âmbito da atenção básica, indicou que preceitos neoliberais impactam diretamente a conduta de assistir a mulher violentada, ao caracterizar na mulher violentada o protagonismo solitário em enfrentar a violência que vive. Não suficiente, os preceitos neoliberais também permeiam na atuação das trabalhadoras e trabalhadores da saúde ao reproduzirem, no seu cotidiano de trabalho, normativas e orientações convergentes à gestão progressivamente mais alinhada ao gerencialismo.

  • Keywords
  • Violência contra a mulher, Trabalhadores da Saúde, Atenção Primária à Saúde, Estratégia de Saúde da Família
  • Subject Area
  • EIXO 7 – Rotas Críticas - Narrativas de Violência Contra a Mulher
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