Apresentação: A criação do Sistema Único de Saúde (SUS) como política de saúde no Brasil impulsionou mudanças organizacionais e paradigmáticas na atenção à saúde, nas estratégias de gestão, nos processos formativos e nas práticas dos trabalhadores de saúde. A saúde se estabelece como direito constitucional e condição de cidadania a todo cidadão que nasce e reside no país. Assim, universalidade do acesso à saúde, equidade com priorização das populações vulneráveis e integralidade do cuidado são os valores que modulam do pensar e fazer saúde no Brasil. A perspectiva da integralidade inscrita no SUS norteia o desenho das políticas e programas bem como sustenta a forma como o profissional de saúde precisa produzir o cuidado. Assim, a saúde é entendida em um conceito ampliado que considera os determinantes sociais de sua produção e as pessoas são acolhidas em sua complexidade, o que significa promover uma assistência à saúde que reconhece outras dimensões que não apenas a biológica. Tem-se como premissa que a saúde é muito mais que ausência de doença e que a forma como as pessoas vivem afeta seu processo de viver, adoecer e ser saudável. Assim, reconhecer que a saúde possui uma determinação social, histórica, cultural, econômica e política implica em reconhecer como as iniquidades sociais, as injustiças e a banalização da violação de direitos impedem pessoas, em sua maioria, em situações de vulnerabilidade de acessarem uma vida significativa, afetando sua saúde. A população privada de liberdade (PPL) pode ser definida como vulnerável, pois direitos primordiais não lhe são garantidos de forma plena. O ambiente prisional é, na maioria das vezes, precário e patogênico: as celas são superlotadas, úmidas e escuras; além da má alimentação e do sedentarismo, a população é exposta ao uso generalizado de drogas e à falta de higiene, o que cria condições ideais para o desenvolvimento de agravos à saúde, tanto de natureza física, quanto psíquica. Portanto, tendo em vista a maior suscetibilidade da PPL ao adoecimento e, buscando construir práticas de cuidado integrais a essa população, surge a inquietação em relação as demandas e necessidades de saúde que mais afligem este seguimento da sociedade tão marginalizado. Tem-se como pressuposto para produzir práticas de cuidado baseadas na humanização e integralidade, o profissional de saúde precisa saber distinguir as demandas em saúde e as necessidades em saúde. A demanda é a expressão de suas necessidades de saúde, muitas vezes mascarada pela oferta que os serviços trazem e, por isso, comunicadas mediante sinais e sintomas. Já as necessidades estão relacionadas as boas condições de vida, acesso a tecnologias que permitam melhorar a vida, criação de vínculo com o profissional e a necessidade de autonomia no seu processo de cuidar. Nesse sentido, surge a inquietação: quais as demandas e necessidades de saúde mais prevalentes em uma Associação de Proteção e Assistência ao Condenado? O estudo teve por objetivo conhecer as demandas e necessidades de saúde de pessoas privadas de liberdade. Desenvolvimento do trabalho: Estudo de natureza qualitativa que teve como participantes 32 pessoas privadas de liberdade de uma Associação de Proteção e Assistência ao Condenado (APAC) de um município do interior de Minas Gerais. Os dados foram coletados mediante análise dos registros de prontuário das consultas de enfermagem realizadas entre os meses de fevereiro a maio de 2024. No período, foram realizadas 43 consultas de enfermagem. Os dados foram organizados em uma planilha de excel no qual foram identificados o motivo da consulta, a queixa principal, a avaliação da enfermeira que fez o atendimento, os diagnósticos de enfermagem estabelecidos, as condutas realizadas e a necessidade de retorno ao atendimento em prazo estabelecido de acordo com o caso. Foi realizada Análise de Conteúdo. A pesquisa foi aprovada pelo comitê de ética sob o parecer: 6.187.415. Resultados: As consultas foram realizadas pela enfermeira e estagiária de enfermagem de uma universidade pública que prestam o único atendimento em saúde existente no cenário estudado. As maiores demandas foram relacionadas a saúde mental expressas por sintomas como ansiedade, dor no peito, falta de ar, necessidade de falar das emoções. Em relação a causa dos sintomas, as pessoas privadas de liberdade atribuem às preocupações com conflitos fora do cárcere, memórias associadas à vida associada ao crime e preocupações com a família. Alguns pacientes referem dor torácica com palpitação, mas que não irradia para nenhuma outra região. Tais sintomas conseguem ser manejados pelos próprios pacientes com leitura, respiração e atividade física evidenciando, segundo eles mesmos, serem resultado de crise de ansiedade. As preocupações que atravessam o cotidiano das pessoas privadas de liberdade interferem diretamente na sua qualidade de vida, gerando dificuldades para se alimentarem e alterando o padrão de sono e repouso. Quando a pesquisa foi realizada, ainda havia estabelecido por lei o benefício da saída por sete dias o que também se constituía como um fator de ansiedade e ambiguidade haja vista o desejo de viver a experiência e o medo de se encontrar com os dramas, tensões e desafetos fora da prisão. Nessa experiência de viver o benefício dos 7 dias, há quem volte com mais esperança e com o desejo fortalecido de cumprir a pena e recomeçar a vida como também há aqueles que, neste intervalo, retomam o uso de drogas e álcool. Também são recorrentes demandas relacionadas a alterações na pele, com eritemas, pruridos e vesículas na região genital decorrente de infecção por herpes. Também apareceram demandas por dor de dente e dor de ouvido bem como necessidade de manejo do diabetes e hipertensão arterial. Há demandas também relacionadas a dor lombar e nas costas. Houve uma demanda específica de paciente portador de anemia falciforme o qual apresentou artralgia e dores musculares, cólicas renais e aumento pressórico. Houve também demandas relacionadas a fadiga, cansaço e dor em flancos esquerdo e direito, irradiando para lombar. Também são demandas comuns disúria, dor em seios paranasais, expectoração e presença de linfonodos palpáveis em região cervical. Muitos solicitam exames de rotina como hemograma. Em meio aos sintomas que expressam demandas dessa população, há também o revelar de seus projetos de felicidade, os sonhos para a vida que desejam construir após a privação de liberdade, evidenciando a necessidade de possuir uma vida digna e com autonomia de escolher ser a pessoa que deseja. Considerações finais: Cuidar de modo integral e humanizado de pessoas privadas de liberdade o reconhecimento das demandas clínicas mais comuns bem como das necessidades existenciais que atravessam seu modo de ser e estar no mundo. A maior demanda desta população é de cuidados com saúde mental e sua maior necessidade é conseguir viver uma vida digna em sociedade. Tais demandas e necessidades evidenciam desafios relacionados a garantia de acesso à saúde dentro do cárcere mediante equipe multiprofissional e estabelecimento de fluxos assistenciais específicos para população privada de liberdade na rede de atenção. Importa, ainda, no processo de cuidar valorizar os projetos de felicidade das pessoas privadas de liberdade bem como capilarizar esta realidade para o conjunto da sociedade. Por fim, pensar em políticas públicas e parcerias intersetoriais para oferecer oportunidades para existir de forma digna na vida fora do presídio.