Apresentamos uma experiência implantada há 9 anos no Brasil, modelo inusual de educação em saúde: o aprendizado a partir de especialistas por vivências e docentes por experiências. O Projeto Comunidade de Fala dá voz a pessoas que socialmente mantinham-se à margem das rodas de conversas, salas de aulas, universidades e em diversos casos, até mesmo das interações familiares e profissionais. “Nada sobre nós, sem nós! Até porque, o nó é nosso”. Esse olhar “de dentro”, que só quem vive certas imersões é capaz de explicar, busca nas profundezas de seus sentimentos e memórias, uma narrativa que propicia mudanças nas plateias e nos próprios palestrantes.
O objetivo primordial do projeto é reduzir o estigma, discriminação e preconceitos sociais referentes às pessoas com condições de vulnerabilidades na saúde mental.
Trata-se de um processo de superação através de ações coletivas que convertem o palestrante em um cidadão partícipe da comunidade. Um método onde ele se torna multiplicador e educador em saúde, com informações concretas sobre a realidade cotidiana de quem tem uma patologia psiquiátrica, rompendo estigmas, fazendo com que sua experiência de vida consolide o esperançar.
A narrativa da vivência das dificuldades e dos desafios no tratamento e nas relações sociais, em sincronia com as múltiplas formas de superação, auxilia pessoas que estão passando por situações semelhantes a se identificarem e sentirem-se mais aceitas socialmente. Ao mesmo tempo, traz à sociedade, uma perspectiva realista das inúmeras possibilidades de superação de pessoas que tiveram um adoecimento psíquico e após seus percursos terapêuticos conseguem inserir-se enquanto cidadãos, em múltiplos espaços sociais, construindo saberes, até mesmo participando de um processo de submissão de um trabalho científico como este.
O Projeto é uma parceria internacional que se desenvolve concomitantemente em São Paulo (SP), Santa Maria (RS), Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA) e um grupo em formação em Florianópolis. Na cidade do Porto, em Portugal, foi implantado com a denominação de Vozes da Esperança. Ele foi idealizado por Richard Weingarten, um docente por experiência norte-americano, que dedicou sua vida como jornalista empenhado na reinserção social e redução dos estigmas em saúde mental.
O método utilizado nas palestras é desenvolvido em passos, iniciando com a auto apresentação dos palestrantes: quem são, seus gostos e atividades preferidas, nunca por um diagnóstico ou condição de saúde. Segue o percurso narrativo dos “Dias difíceis”, sobre vivências em relação aos adoecimentos psíquicos, como internações psiquiátricas, tentativas de suicídio, crises psicóticas, etc. Continua com a abordagem sobre os processos de “Aceitação” e “Tratamento”. Na sequência, traz noções de autocuidado e o lidar com os problemas decorrentes da saúde mental como preconceitos, perda de emprego, dificuldades nos relacionamentos familiares, repercussões do adoecer. As etapas finais das palestras dão a noção exata da aquisição de autoconhecimento, empoderamento, autonomia, poder contratual e cidadania adquiridas ao longo do percurso de superação. São elas: “Sujeito de minha própria história” e “Sucesso, Esperanças e Sonhos”. Nesta última etapa da apresentação, os palestrantes discorrem com orgulho sobre as redescobertas e conquistas que têm atingido e suas perspectivas futuras. Voltar a trabalhar ou a estudar, publicar um livro, ser reconhecido como um ativista em saúde mental, estabelecer um novo status de acreditação social, criar um podcast sobre saúde mental, são algumas das conquistas observadas nas equipes do projeto.
Destaca-se na Comunidade de Fala, a amizade entre os palestrantes - pessoas que, muitas vezes passam anos excluídas da sociedade. O ambiente democrático do grupo, a convivência no treinamento das palestras e avaliações de desempenho, permite um crescimento pessoal e a benéfica sensação de pertencimento. O apoio de pares (peer support) é algo que naturalmente se consolida em cada núcleo.
O núcleo de Santa Maria, vinculado ao Espaço Nise da Silveira & AFAB, Programa de Extensão da Universidade Federal de Santa Maria, contabiliza 76 apresentações de pessoas em processo de superação (recovery). Foram diversas palestras em serviços de saúde, escolas, cursos técnicos e congressos científicos, assim como em aulas nos diversos cursos universitários da área da saúde, como Enfermagem, Psicologia, Terapia Ocupacional e Serviço Social. Na Terapia Ocupacional, por exemplo, há nove semestres, gerações de alunos aprendem com docentes por experiências. Visa-se assim, uma oportunidade de oferecer um incremento na humanização da formação profissional e em última análise, uma maior qualificação na compreensão e no acolhimento das demandas das pessoas com sofrimentos psíquicos graves, por parte dos profissionais da saúde e educação.
Com a necessidade de afastamento social durante a pandemia, o projeto passou a fazer suas apresentações de modo virtual, o que potencializou uma modalidade utilizada ocasionalmente, de promover palestras mistas, ou seja, duplas constituídas por palestrantes de diferentes núcleos do Comunidade de Fala. Esta estratégia propicia uma maior integração entre pares, promovendo trocas transculturais e estabelecendo laços afetivos entre eles.
Apesar de diferenças geográficas, culturais, educacionais e de histórico psicopatológico, há uma sintonia impressionante entre as experiências de vida dos palestrantes. Inclusive, oportuniza-se deliberadamente o encontro de duplas díspares, como por exemplo, uma pessoa com formação acadêmica de pós-doutorado palestrando com outra que tem ensino fundamental incompleto. Ou alguém com inúmeras internações psiquiátricas devido a desestruturações psicóticas palestrar ao lado de um colega que nunca precisou internar. A heterogeneidade se dissipa assim que começam a relatar suas experiências. Também os diagnósticos psiquiátricos e prognósticos clínicos se mostram menos relevantes no percurso de superação do que características de personalidade das pessoas que tem maior ou menor facilidade de aceitação das dificuldades e abordagens terapêuticas necessárias.
Resultados: Do ponto de vista quantitativo, o Núcleo de Santa Maria do Projeto Comunidade de Fala, foco de nossa apresentação, realizou 76 apresentações em duplas, atingindo um público alvo de 3.577 pessoas, em 11 cidades presencialmente, desde municípios próximos, até capitais, como Porto Alegre e São Paulo, além de 16 palestras virtuais ou híbridas. Foram 7 palestras mistas, compostas por integrantes de dois núcleos diferentes. As fichas de avaliação, entregues ao final de cada palestra para a plateia deixar sua devolutiva, apontam que 89% avalia o evento como muito bom e 11% como tendo sido bom, sem nenhuma avaliação negativa do projeto, conforme dados de pesquisa realizada em 2023. Estes dados materializam a repercussão social que o projeto tem em quem assiste-o. O impacto qualitativo evidencia-se a partir do crescimento pessoal dos palestrantes, do resgate de suas autoestimas e fortalecimento de suas identidades como cidadãos, não somente incluídos na sociedade, mas empoderados e protagonistas de suas conquistas. Resultados acadêmicos: o projeto gerou dois artigos científicos, uma inserção no Portal do Laboratório de Inovação Latino-Americano de Práticas de Participação Social em Saúde da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), mediante aprovação em edital de 2023 e é descrito em dois capítulos dos livros: "Luta Antimanicomial e os 30 anos da Lei Estadual da Reforma Psiquiátrica/RS. Rumo a novos avanços na garantia de direitos" e "UFSM no Distrito Criativo", respectivamente.
Considera-se primordial a continuidade do projeto Comunidade de Fala, com a ampliação e aprimoramento dos seus núcleos nacionais, preservando seu método original, compreendendo-o como uma nova abordagem terapêutica em saúde mental, que beneficia tanto a sociedade em geral e a formação de profissionais da saúde e da educação em particular, quanto os palestrantes, que se reafirmam e se fortalecem a cada apresentação.
Para conhecer melhor a relevância deste projeto, acesse o site: www.comunidadedefalabrasil.com.br e o link: https://apsredes.org/live-lis-cns/comunidade-de-fala/