É possível narrar dissidências por vir, começos indefinidos, instaurados como sensações (sem ideias, sem imagens, sem emoções codificadas pela cultura), no atrito entre formas reconhecidas e forças de ruptura? A pesquisa de Doutorado em Letras, intitulada “Políticas das sensações: narrar memórias do futuro”, na Universidade Federal de Santa Maria, investiga as potências das indefinições de sentidos em narrativas literárias, com a hipótese de que as margens à inventividade se tecem com o que não se adaptou às ordens discursivas instituídas. Essa inadaptação se manifesta como figuração dissidente, atípica, desviante; ou como uma “dança impessoal dos átomos” (Rancière, 2017), partículas em movimento, que, no instante em que se tenta capturá-las, sente-se a reverberação da passagem, em meio à proliferação de detalhes insignificantes, à profusão de vozes discordantes e à equivocidade dos signos. Os pontos de partida são contraintuitivos: afirmam-se políticas pré-reflexivas, pensa-se a arte como acontecimento clínico-político, causa de “movimentos salutares”, que incrementam as potências dos corpos. Pergunta-se: além de construir imagens de outros mundos possíveis, como narrativas participam da “reapropriação da força vital” (definição de Rolnik, 2023), da ativação de processos de emancipação? Compreende-se que as impressões sensíveis de um corpo não adaptadas aos esquemas dominantes de percepção e de inteligibilidade se inscrevem como “memórias do futuro” (expressão de David Lapoujade, 2017). Investiga-se como se expressam nas narrativas literárias (inclusive nas apresentadas como mítico-históricas) essas inscrições inadaptadas, potências de ruptura. Uma das hipóteses é de que, nos usos da linguagem, a indefinição dos referentes, associada à descontextualização de signos, cria condições à política (ação, gesto que instaura começos e futuros imprevisíveis). Denominam-se os efeitos das indefinições de sentidos como “políticas das sensações”. Quatro artefatos estéticos são intercessores do pensamento: a obra-acontecimento Caminhando, de Lygia Clark (1963); a canção-narrativa Alegria, alegria, de Caetano Veloso (1967); narrativas de Umbigo do mundo, de Francy Baniwa (2023); e A ordem natural das coisas, romance de António Lobo Antunes (1996). O que entrelac?a as ana?lises dos artefatos estético-culturais e? a insubmissa?o ao presente. Experimenta-se a elaborac?a?o teo?rico-crítica como ato de criac?a?o, efetuac?a?o de pote?ncias de variac?a?o, mais atento aos trac?os singulares do que a?s se?ries e estruturas, instaurando os pontos de não sentido como existe?ncias mi?nimas, virtuais, comec?os de “processos criadores, antagonistas a? ordem estabelecida de significac?o?es” (Guattari, 2022). A cri?tica literária engendra-se como processo de criac?a?o que envolve uma disposic?a?o sonhadora (associac?o?es expandidas, inadaptadas), imoralista (na?o normativa, aberta a?s disside?ncias e?ticas, poli?ticas e este?ticas, nos temas, nas formas e nos afetos) e de admiratio (hesitac?a?o, suspensa?o dos sentidos). Conceitos, obras-acontecimentos e maneiras de ler se entrelaçam como práticas de outramento do pensamento e de invenção de novas formas de vida.