O presente trabalho trata-se de um relato de experiência de uma psicóloga, indígena de etnia Potiguara, migrante, residente em Saúde Mental Coletiva/UFRGS que esteve junto à Área Técnica (AT) de Saúde dos Povos Indígenas de Porto Alegre. Tem por objetivo apresentar a atuação da Área Técnica e os processos instituintes construídos pela inserção de profissionais indígenas na Gestão. Serão discutidas as particularidades do município e a construção coletiva junto às comunidades de dispositivos de cuidado, em especial a implementação de um grupo mensal em uma aldeia Kaingang com enfoque no cuidado em saúde mental. É de relevância destacar que Porto Alegre é um dos únicos municípios do Brasil que conta com uma Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena vinculada à prefeitura, atuando de forma complementar à Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) do Ministério da Saúde.
No Sistema Único de Saúde, a Saúde dos Povos Indígenas foi instituída através da Lei 9.836/1999 que implementa o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASISUS), e da Portaria nº 254/2002 que institui a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI). A PNASPI estabelece as Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI), que atuam como Unidades Básicas de Saúde itinerantes e são vinculadas à SESAI. Como citado anteriormente, uma particularidade de Porto Alegre é que em 2013, por reivindicação das lideranças, foi instituída uma Equipe de Saúde Multidisciplinar Indígena vinculada à prefeitura para atuar de maneira complementar a EMSI da SESAI, atendendo as aldeias Kaingang e Charrua. As aldeias Guarani são atendidas unicamente pela SESAI por decisão das lideranças e comunidades.
Sendo assim, o território que nos dias atuais é chamado Porto Alegre é sobreposto aos territórios indígenas das etnias Charrua, Kaingang e Mbyá-Guarani, espalhados pela cidade em aldeias, retomadas e coletivos familiares. A atuação da Área Técnica é mais próxima das aldeias Kaingang e Charrua por razão do acompanhamento da EMSI, que é uma das principais responsabilidades da área. De toda forma, houveram diversos momentos de trabalho junto aos Mbyá-Guarani relativos às outras atribuições da Área, que são o acompanhamento de todas as ações e serviços que atendem indígenas na cidade, incluindo os estudantes indígenas da Casa do Estudante Indígena na UFRGS; o planejamento de atividades de Educação Permanente em Saúde, como o curso e o Seminário de Saúde Indígena em contexto urbano realizados no ano de 2023; a vigilância e a construção coletiva de reuniões mensais entre lideranças, SESAI e EMSI; a elaboração conjunta do Plano Operativo da política de atenção à saúde dos povos indígenas do município, entre outras atividades.
Dentre as ações desenvolvidas, destacou-se a criação de um Grupo de Bem Viver Indígena em uma das aldeias da cidade no segundo semestre de 2023. O projeto surgiu nas reuniões mensais que ocorrem entre equipes de saúde, lideranças e Área Técnica, onde foi exposto pelas representações das comunidades uma série de preocupações relativas a agravos em saúde mental. Com reconhecimento dessas situações por parte da Equipe Municipal de Saúde Indígena e em articulação com a psicóloga da SESAI, foi proposto pela Área Técnica a realização de um grupo aberto, mensal e semi estruturado na aldeia que estava apresentando essas questões com maior incidência. A principal intenção era dar um lugar para as questões que desaguam e aparecem como saúde mental, de modo a elaborar outras alternativas de cuidado que não somente a consulta médica e a medicalização, respeitando e fortalecendo os saberes produzidos na própria comunidade como possibilidades legítimas de cuidado.
Com relação aos encontros, a Área Técnica esteve presente na elaboração metodológica, na articulação com a aldeia e no fornecimento de materiais para as práticas com artesanato. Na época, os profissionais que integravam a Área eram o servidor técnico responsável, antropólogo de formação, uma estagiária da Enfermagem, indígena de etnia Kaingang e moradora da aldeia em questão, e a autora do relato, psicóloga, residente do programa de Saúde Mental Coletiva/UFRGS. O grupo se estabeleceu com uma maioria feminina, de diversas faixas etárias, o que teve efeito nas discussões fomentando o compartilhamento de diferentes perspectivas sobre as dificuldades e os preconceitos enfrentados por ser mulher indígena nos diferentes momentos históricos.
Do ponto de vista teórico, foram utilizados os conceitos da análise institucional: análise da demanda e da encomenda, análise da oferta e análise de implicação. A Área Técnica de Saúde dos Povos Indígenas, enquanto Gestão, atuou na mediação entre o pedido da comunidade por maior atenção à Saúde Mental, para além de medicações, e o pedido dos trabalhadores que reivindicavam maior suporte para lidar com essas questões. Essas seriam uma parte das encomendas explícitas, enquanto as demandas se apresentaram com grande amplitude no decorrer do projeto.
Com relação a análise de oferta, a particularidade da promoção de Saúde dos Povos Indígenas é pedagógica a toda Saúde. No contexto de evidentes diferenças culturais, de linguagem e território, as distâncias entre profissionais de saúde e usuários pode ser um abismo. Então, o esforço para construção de um lugar comum tem que ser ativo. E, nesse caso, a proposição de um dispositivo se deu na escuta da comunidade e dos profissionais indígenas da aldeia, com o questionamento sobre de que maneira poderíamos instaurar um espaço de acolhimento e ação dentro do território que fosse comunitário e fundamentado em produzir um saber original, mesmo que antigo, na relação com os novos desafios enfrentados por aqueles sujeitos. Foi imprescindível a participação ativa dos profissionais indígenas Kaingang que estavam presentes na Equipe de Saúde e na Área Técnica para disputar o “como fazer” com o saber biomédico e apresentar aos seus pares a ampliação das possibilidades de cuidado e manejo dos sofrimentos ali existentes.
Então, foi efeito da atuação conjunta dos profissionais indígenas e de profissionais bem capacitados ao trabalho com povos indígenas, a emergência de forças instituintes que questionaram o modo de fazer que estava em curso no espaço da Saúde Indígena de Porto Alegre. Foi perceptível a mudança nas reuniões, nas relações, na realização das ações de saúde, na construção conjunta de novos dispositivos de cuidado (como o Grupo de Bem Viver), nos espaços de discussão voltados à residência, na incidência no Plano Operativo da Política de Saúde dos Povos Indígenas de Porto Alegre para 2024 e até mesmo no trabalho conjunto com outros núcleos dentro da Secretaria Municipal de Saúde.