As inundações que ocorreram no Rio Grande do Sul entre o final de abril e o início de maio de 2024, atingindo milhares de pessoas e animais, são consequências diretas dos processos de exploração e devastação do nosso bioma e do aquecimento global. Assim como em todo o território brasileiro, o RS tem um histórico colonial de apagamento e violação dos direitos dos povos originários, quilombolas, dentre outras comunidades tradicionais, que cuidam da Terra. Embora esses grupos não sejam os únicos afetados, são os primeiros a sentir os efeitos da devastação do Pampa, acelerada por uma lógica de governabilidade que defende os interesses e o modelo de produção expansionista e predatória do agronegócio ao longo dos anos, enquanto seus alertas, conhecimentos e luta pelo território continuam sendo ignorados.
É preciso contextualizar o que acontece no Rio Grande do Sul com a raiz do problema, que é primordialmente consequência direta das alterações climáticas. Essas mudanças afetam também a saúde mental da população, já que as alterações nos ecossistemas podem levar não apenas à perda de vidas humanas e não-humanas, mas também à perda de modos de vida e meios de subsistência, gerando uma grande incerteza e preocupação com o futuro.
Nesse contexto, este trabalho tem como objetivo seguir o convite feito por Donna Haraway sobre “permanecer com o problema" (alterações climáticas) e discutir com Glenn Albrecht a "solastalgia", para enfrentar os desafios na reorganização dos modos de vida, além de trazer reflexões sobre o suporte e cuidado em saúde mental, nomeando e reconhecendo nossos sofrimentos e suas origens.
Mesmo que os rios retornem aos seus leitos, não há normalidade para onde possamos voltar no Rio Grande do Sul. Essa é uma situação que se prolongará por muito tempo, e as pessoas que estão em processo de retorno e reconstrução de seus lares experimentam a perda do presente e a impossibilidade de viver em tranquilidade no lugar onde construíram suas vidas, pois precisarão conviver com um cenário de devastação de suas casas e de suas memórias destruídas pela lama, com a iminência de novos eventos climáticos extremos e com o trauma das perdas recentes, e em muitos casos, com a impossibilidade de reconstrução das áreas afetadas.
Embora muitas pessoas diretamente afetadas pelas enchentes não tenham sido exatamente despossuídas de seus territórios, ao retornarem para suas casas e comunidades, há uma percepção negativa, de angústia e desconforto em relação ao ambiente doméstico, uma vez que muitos vínculos foram rompidos abruptamente.
As perdas materiais, como perder uma casa, são extremamente dolorosas, pois uma casa é vista pela maioria das pessoas como um investimento de esforço individual ou familiar, resultado de muito trabalho ao longo da vida. É a casa que testemunha trechos íntimos da vida. É um espaço que reúne informações e memórias dessas pessoas, proporcionando a sensação de pertencimento, unidade e segurança.
Nesse sentido, a população do RS teve sua identidade, noção de pertencimento, saúde física e mental e bem-estar social comprometidos por uma tragédia que, apesar de anunciada, causou mudanças drásticas e inesperadas, sem que essas pessoas tivessem sido minimamente preparadas para o que estava por vir, visto que a mitigação dos efeitos das alterações climáticas não é uma preocupação do governo local.
Embora seja um conceito relativamente novo, o termo "solastalgia", desenvolvido por Glenn Albrecht, oferece uma maneira de qualificar os sentimentos de angústia, raiva, tristeza e sofrimento intenso que estão sendo vivenciados por pessoas que perderam a sensação de segurança e conforto em relação aos seus lares e territórios devido à degradação ambiental ocasionada pelo modelo colonial extrativista e suas consequências, expressas nas chuvas de granizo em 2023 e mais recentemente nas enchentes de 2024. Solastalgia pode ser definido como: "a dor ou estresse causado pela perda ou incapacidade de derivar consolo (solace) devido à percepção negativa do estado do meio em que se habita. Não se trata apenas da angústia ou tristeza pela impossibilidade de retornar ao lar, mas também da perda da capacidade do próprio lugar que se considera lar de oferecer refúgio ou conforto."
Esse é um estado mental que está e continuará fazendo parte do nosso cotidiano no território pampeano nesse cenário pós-enchente, muitas cidades e ambientes que, como diz numa canção muito conhecida para os gaúchos, era “um lugar pra viver sem chorar” se tornaram espaços que demonstram certa hostilidade a vida pela ruptura de relações saudáveis entre nossa casa-território.
As perdas podem levar ao sofrimento psíquico intenso, manifestando-se em sentimentos de ansiedade, hipervigilância, depressão, estresse pós-traumático, abuso de substância, dentre outros processos que continuarão a demandar estratégias de cuidado em saúde mental qualificadas, contínuas e coletivas. Neste momento, é crucial compreender que os desafios climáticos tendem a ser intensificados por políticas que negligenciam o conhecimento e a contribuição, assim como não asseguram os direitos, dos povos originários, quilombolas e comunidades tradicionais na teia de cuidado e equilíbrio que interliga biomas e mundos-outros, essenciais para nossa continuidade dentro das condições que enfrentamos.
Assim sendo, enquanto pessoas impactadas pelo colonialismo retroalimentado pelo capitalismo e profissionais da saúde e saúde mental, precisamos acolher nossa solastalgia e "permanecer com o problema”, sendo então necessário pensar, localizar e politizar as manifestações de angústias e sofrimentos mentais que partem dos processos de devastação do Pampa e de nossas identidades, reconhecendo nossas relações de interdependências com outros seres vivos e não-vivos. Neste longo e inacabado processo de reconstrução, é inadiável a elaboração de uma identidade pampeana que se relacione com a paisagem do Pampa destruído, que nos direcione aos caminhos de resistência, reconexão com a terra e resposta política aos desafios de viver em uma terra arrasada e marcada pelas rodas dos tratores do agronegócio.
Não se trata de idealizar um “novo mundo”, mas de como precisaremos e iremos lidar com as condições já existentes para que possamos estabelecer condutas que fortaleçam e influenciem políticas públicas de saúde mental, além de práticas de cuidado e outras abordagens em saúde mental de bases comunitárias que sejam receptivas às necessidades daqueles que estão em processo de recuperação de suas memórias-território, orientadas pelos princípios fundamentais dos direitos humanos.
Como diz Bellacasa, “o cuidado é importante demais para ser largado às reduções que dele faz a ética hegemônica”. Portanto, além de denominar nosso sofrimento, retomar nosso protagonismo e o que resta do Pampa.