Apresentação: A Atenção Primária à Saúde (APS) ou Atenção Básica (AB), em acordo com a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), apresentam-se como termos equivalentes e, por isso, referem-se ao serviço de saúde responsável por atuar como porta de entrada, coordenar e ordenar o cuidado, às ações e os serviços dentro da Rede de Atenção à Saúde (RAS). Está pautado em responder às necessidades de saúde, seja em nível individual, familiar ou coletivo, de forma territorializada e considerando os condicionantes e determinantes de saúde. É de suma importância mencionar que a PNAB, através da portaria de nº 2.436, de 21 de setembro de 2017, alterou a versão promulgada em 2011, regulamentando novas estruturações para organização da AB no que tange o Sistema Único de Saúde (SUS). Objetivo: Descrever uma experiência baseada em um júri simulado para discutir as mudanças que ocorreram na PNAB considerando as versões 2011 e 2017. Metodologia: Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa e caráter descritivo, no formato de relato de experiência, de um encontro teórico presencial como parte do módulo de Políticas Públicas do Programa de Residência Multiprofissional da Atenção Básica (PRMAB) da Escola de Governo Fiocruz Brasília. O tema abordado foram as mudanças ocorridas na PNAB que ocorreu a partir da construção de um júri simulado, dividindo a turma em referências de um tribunal judiciário para defender e acusar as modificações da política. Neste sentido, coordenou-se para que houvesse juiz(a), promotores, advogados e júri popular, englobando todos os presentes. Foram utilizados, como fontes de informação a PNAB, além de documentos técnicos e normativos oficiais. Esta atividade aconteceu em agosto do ano de 2023. Resultados: A revisão da PNAB se dá permeada por questões de disputas político-partidárias e de austeridade fiscal à época, e implica novas formas de organizar o serviço da AB no âmbito do SUS. Os intérpretes da acusação pontuaram como principais mudanças o modelo de financiamento, com critérios para cálculo de valores das transferências intergovernamentais, para a prática da descentralização de recursos e viabilização das ações em saúde neste nível de atenção. Em 2011, estava baseado no número de habitantes e de equipes de saúde da família (eSF) existentes no município, o que compunha o Piso da Atenção Básica (PAB) Fixo, e na avaliação de desempenho das equipes constituindo o PAB variável. Em 2017 esses pisos foram extintos e os repasses passaram a ser condicionados a captação ponderada (cadastro de pessoas ponderado pelo risco), ao pagamento por desempenho e incentivo para ações estratégicas. Isso significou a anulação do financiamento universal à AB, com consequente reorientação dos pressupostos de territorialização e assistência integral e total. Primeiro, por dar margem ao subfinanciamento dada à prerrogativa do número total de população efetivamente cadastrada, o que não reflete as realidades locais dadas as dificuldades para alcançá-lo. Segundo, a ênfase em atendimentos e cuidados individuais e em manejo de doenças restringe o potente papel da AB em oferecer integralidade da atenção à população e desmobiliza as equipes a reconhecer as reais necessidades e determinações sociais de saúde. Por fim, a centralização dos pagamentos por desempenho e incentivo focaliza os produtos de ações em saúde em detrimento da organização, problematização, monitoramento e avaliação contínuas dos processos de trabalho, que contribuem na qualificação da assistência prestada. O corpo de acusação destacou que, de acordo com a PNAB 2011, a quantidade de Agentes Comunitários de Saúde (ACS) deveria corresponder a população adscrita pela UBS para proporcionar 100% de cobertura. No entanto, em 2017, o número de profissionais ACS surge como algo a ser definido dependendo da necessidade local, do perfil epidemiológico, demográfico e socioeconômico. Ao referir as áreas compreendidas como locais permeados por vulnerabilidades sociais ou com riscos territoriais, a política recomenda que o ACS esteja vinculado a no máximo 750 pessoas e que a cobertura seja de 100% nestes lugares. Neste sentido, pontuou que nova versão relativiza a maneira como se determina esse número, tornando possível que haja apenas um ACS compondo uma eSF, e deixa a cargo de decisão da gestão a ampliação, o que influi numa cobertura ineficaz e fragilizada, pelas características e barreiras de cada território e pela sobrecarga de trabalho. Outro elemento enfatizado é a redação sobre a estratégia da saúde da família (ESF) como modelo prioritário para a consolidação da AB. É pontuado em parágrafo único que equipes de Atenção Básica (eAB) poderão ser reconhecidas no âmbito da APS, cabendo a esta as atribuições comuns a eSF, como por exemplo: garantir e coordenar o cuidado e subsidiar estratégias para ampliação do acesso e dos serviços ofertados através da Unidades Básicas de Saúde (UBS). Uma ressalva consiste no fato que eAB receberão financiamento inferior às outras e ainda poderão ser constituídas sem a presença de ACS, uma vez que é facultativo para as eAB. Em contrapartida, a defesa referiu que todas as mudanças configuram avanços ao SUS, viabilizando o Estado a gerir a política de saúde pública, otimizar os custos em saúde, melhorar a cooperação entre os níveis assistenciais e potencializar a resolubilidade da APS. Reconhecer outras estratégias de equipe na APS é vista como alternativa para ampliar novos modelos assistenciais e continuar a consolidação da AB. O ACS foi colocado como profissional ainda importante, e o destaque às áreas de vulnerabilidade não configura a ausência do trabalho destes em todas as áreas cobertas pelas UBS. A promotoria ponderou que é preciso considerar a redação de forma literal, e como foi estabelecido ficou sugestivo o número de profissionais a serem incorporados a eSF, bem como ficou desvalorizado o trabalho e importância do ACS. Em seguida, foi mencionado que a ESF, inicialmente, pensada para ser o Programa Saúde da Família (PSF) desde 1994 - e especialmente em 2006 quando se tornou eSF em caráter prioritário da AB - teve reafirmado seu objetivo em 2011 na revisão da PNAB. Isso trouxe avanços imensuráveis, na redução de mortalidade infantil ou por doenças cardiovasculares, e no número de internações em outros níveis de atenção à saúde. Estes foram alguns dos exemplos, mas é sabido que pela a concepção de promoção e proteção à saúde a ESF tem melhorado a saúde da população e ampliado o poder de resolutividade da AB. O júri popular, formado por cerca de 25 pessoas, votou a favor da acusação. A juíza proferiu sua decisão tornando como veredito a revogação do texto da PNAB 2017, como solicitado pela acusação. Considerações Finais: A metodologia utilizada provocou mobilização e propiciou discussões crítico-reflexivas acerca da PNAB, bem como dos avanços, dilemas e retrocessos incorporados à política, principalmente ao considerar que seus efeitos se deram por questões políticos-partidárias que atravessam a PNAB e o SUS, causando prejuízos a população e aos trabalhadores da saúde.