Este trabalho apresenta um relato de experiência da realização do “Curso Ambiente, Saúde e Cultura no Alto Xingu: qualidade do ar e da água, biodiversidade, segurança alimentar e nutricional para os povos xinguanos”, que ocorreu de forma presencial entre os dias 28 de janeiro e 01 de fevereiro de 2024, no Polo Leonardo, situado no Território Indígena do Xingu (TIX), e foi direcionado aos Agentes Indígenas de Saneamento (AISAN), Agentes Indígenas de Saúde (AIS), professores, gestores e lideranças femininas da abrangência da região do Alto Xingu. Com a coordenação conjunta da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) e do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI) da Fiocruz, do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Xingu, contou com instrutores e apoiadores não indígenas e indígenas de três etnias do Xingu (Waura, Yawalapiti e Kuikuru). O curso foi financiado pelo Programa Inova Fiocruz e VPAAPS/Fiocruz, sendo um dos resultados dos projetos da Fiocruz “Avaliação de Impacto a Saúde decorrente das Mudanças Climáticas e dos Incêndios Florestais Sobre os Povos Indígenas”, da ENSP e “Conexão Saúde Alto Xingu”, do INI.
O objetivo da capacitação foi qualificar os AISAN e AIS para a realização de ações básicas de vigilância da saúde ambiental nas aldeias do Xingu, abrangendo as mudanças climáticas, a avaliação da qualidade da água para consumo humano, a qualidade do ar, a biodiversidade, as zoonoses e a soberania alimentar. A formação buscou promover a articulação entre agentes indígenas no desenvolvimento colaborativo de estratégias de comunicação e engajamento das comunidades, fortalecendo a governança e a compreensão dos impactos à saúde decorrentes das alterações ambientais. As aulas foram estruturadas com apresentações teóricas, entremeadas de devolutivas com os resultados dos estudos realizados Xingu, seguidas de debate e atividades práticas em grupo: rodas de conversa, desenvolvimento de projetos de comunicação e vídeo debate. Participaram do curso 44 alunos, sendo 34 homens e apenas 8 mulheres. Destes 18 são AIS, 22 são AISAN, 2 professores e 2 lideranças femininas, representando10 etnias do Alto Xingu. O tema das mudanças climáticas e poluição do ar envolveu problemas recorrentes e atuais no TIX, como o aumento da seca e dos incêndios florestais. Os indígenas relataram a dificuldade do trabalho no sol e no uso do fogo para abertura de roças e preparação dos alimentos. Indicaram evitar trabalhar no período entre 12h e 16h, devido à intensidade do calor; plantar árvores frutíferas em volta da aldeia e reflorestar as áreas degradadas; trabalhar com a brigada de incêndio, considerando as épocas de florada na definição da queima prescrita; explicar o problema do fogo e clima nas escolas e na comunidade; construir a cozinha fora da oca e quando possível utilizar o fogão a gás; ampliar o entendimento de como as doenças respiratórias circulam. A temática da água e do saneamento foi a que mais mobilizou os participantes, uma vez que a água no TIX, vem perdendo sua qualidade e quantidade devido as alterações climáticas, desmatamento e contaminação por agrotóxicos. O DSEI não consegue fazer o monitoramento da qualidade da água, por isso os indígenas não se sentem seguros com o consumo, mesmo onde tem poço artesiano. Há um desafio para integração dos hábitos culturais indígenas relativos ao consumo de líquidos, baseado apenas na ingestão de mingau de beiju, pequi, e da medicina tradicional, no enfrentamento das doenças de veiculação hídrica, como a diarreia infantil que tem alta prevalência no Xingu. As sugestões levantadas foram: construção urgente de poço artesiano; criação de um laboratório no TIX para o monitoramento da qualidade da água; evitar a defecação próxima aos rios e o descarte adequado de resíduos sólidos; construção de banheiros externos; incentivar o uso diário do cloro na água e o uso do filtro de barro.
A aula sobre biodiversidade e saúde silvestre, trouxe noções de como o ambiente e os animais estão interrelacionados com a saúde humana. Também foram debatidos os sintomas, primeiros socorros e maneiras de prevenção para os casos de zoonoses e acidentes com animais peçonhentos. Foi feita uma oficina de vigilância participativa de zoonoses com o uso de celular, utilizando a plataforma e SISS-Geo. Os participantes falaram em estratégias para combater a resistência à vacinação e castração de animais domésticos; evitar a domesticação de animais silvestre nas aldeias e manter longe da casa e de fonte de água animais como tracajás e galinhas.
O último tema explorado foi sobre segurança e soberania alimentar e as doenc?as cro?nicas na?o transmissíveis, com uma discussão sobre a transição epidemiológica e nutricional na população indígena do Xingu, práticas para prevenção e promoção da saúde, finalizando com o debate sobre um plano de gestão ambiental para o Xingu. O destaque foi a defesa do território para manter a alimentação tradicional, e práticas de como cuidar do ambiente para preservar a cultura e a saúde da população. Como propostas definiram as ações: atualizar o calendário tradicional; combater a perda de sementes no território; procurar a medicina tradicional antes do remédio da cidade; diminuir o consumo de carne de frango; resgatar o consumo da perereba e do mingau, em substituição ao café com açúcar; apoiar a elaboração de uma política de inclusão dos médicos tradicionais no SasiSUS; levar para a governança interna do Xingu as propostas de capacitação na medicina tradicional e de contratação dos pajés, raizeiros e parteiras pelo SUS; fazer essa capacitação para os fazendeiros no entorno do TIX.
Os participantes ressaltaram a urgência em compreender o que está ocorrendo com o ambiente e com o clima no território, sugerindo capacitações aprofundadas com especificações direcionadas para o AIS e AISAN. Identificaram a necessidade de estreitar a comunicação e o trabalho entre a equipe da SESAI e do DSEI, e com os agentes. Destacaram a garantia das devolutivas das pesquisas, mostrando como os indígenas apreendem os resultados e os incorporam nas suas práticas. Aconselharam unir explicações científicas com percepções locais, incluindo a questão da ancestralidade para entender e lidar com as mudanças ambientais, garantindo a preservação cultural.
A experiencia vivenciada no curso apontou desafios para a implementação do Sasisus, especialmente para cumprimento da diretriz da atenção diferenciada e global, que para ser alcançada é necessário efetivar as práticas de formação permanente para atuação em contextos interculturais, na ampliação dos currículos, incluindo a interculturalidade e interseccionalidade no cuidado à saúde dos povos indígenas. Sobressai-se o desafio de coadunar no mesmo espaço tempo as medicinas ocidentais com as tradicionais, contra o modelo biomédico, e o aporte de recursos em logística para garantir o acesso da assistência à saúde, as ações de prevenção e promoção, e melhorar a atuação dos AIS e AISAN.