Há dez anos teve início o Projeto de Extensão Promoção da Vida e Prevenção do Suicídio (PEPVPS) que surgiu de uma parceria do Núcleo de Vigilância Epidemiológica Hospitalar (NVEH) do Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM) com o Programa de Extensão Espaço Nise da Silveira & AFAB (Associação de Familiares, Amigos e pessoas com Bipolaridade), da UFSM. O NVEH tem a responsabilidade de notificar os comportamentos suicidas de pessoas que utilizam os serviços do HUSM, seja através de internação ou atendimento ambulatorial e de urgência. Entretanto, havia uma lacuna entre fazer busca ativa dos agravos para tabular os dados cada vez mais elevados e a necessidade de intervir com ações preventivas. Desde a criação do Projeto de Extensão foram ampliadas as ações que até então restringiam-se às notificações propriamente ditas e a sensibilização das equipes sobre a importância e necessidade desta.
A partir de uma demanda inesperada, da necessidade de apoio a uma UTI frente ao suicídio de um profissional, iniciamos as intervenções que geraram o projeto de extensão, cujas solicitações foram surgindo numa perspectiva em bola de neve, tanto nos pedidos de ações educativas quanto a consultorias clínicas e apoio na elaboração do luto.
Inicialmente denominados “grupos de sobreviventes”, passaram a ser considerados como grupos de posvenção, ao longo dos anos. Em uma década, foram realizadas dezessete ações de posvenção, frente a treze suicídios, considerando situações que demandaram mais de uma ação. Os contextos foram os mais diversos, desde grupo de posvenção aguda no CTI, imediatamente após o suicídio de uma profissional, para a equipe abalada pela tragédia; até uma atividade de posvenção ao ar livre, na praça de uma comunidade, organizada como roda de conversa, para auxiliar familiares, amigos e vizinhos a conseguirem prosseguir após a perda de um adolescente.
Auxiliar na elaboração inicial do luto é um papel importante frente a qualquer situação de perda. Nas vivências de morte por suicídio, o papel ativo de disponibilizar momentos de apoio e reflexão coletiva sobre o que aconteceu tem um efeito protetor preponderante, pois são em geral lutos silenciados, envoltos em sentimentos negativos como vergonha, culpa, remorso, e até mesmo discriminações sociais. A confusão mental, incompreensão, ruminações, angústias, medos, raivas, impotências despertadas são tão impactantes e mobilizadoras que quanto mais precocemente forem nominadas, mais amparados possam se sentir, especialmente se o processo for realizado num coletivo de pessoas que estejam identificadas naquele momento pela mesma dor, permitindo-se que os sobreviventes compreendam que é esperado que vivenciem um turbilhão de pensamentos e sentimentos.
A capacitação de profissionais da saúde para um olhar mais acurado na detecção precoce de sinais de risco e na identificação precoce de diagnósticos e consequente abordagem terapêutica de possíveis adoecimentos psíquicos é uma das prerrogativas dos planos nacionais de prevenção do suicídio. Numa perspectiva micropolítica, o projeto tem se disponibilizado a exercer este papel, ciente de todas as resistências que o tema suscita em muitas equipes de saúde.
Numa construção conjunta com o Grupo de Trabalho Integrado de Enfrentamento às Violências e o Fórum Permanente de Saúde Mental da Região Central, o Projeto de Extensão organizou nove edições do Encontro Regional de Promoção da Vida e Prevenção do Suicídio. Palestrantes regionais e nacionais compartilham conhecimentos e atualizações. Temas interdisciplinares como: “Tecendo Linhas de Cuidado para a Efetivação da RAPS”, “Enfrentamento das Crises na Contemporaneidade”, “Gestão e Atenção das Crises Suicidas: articulação das redes”, “Saúde Mental dos Estudantes”, “Construindo Redes de Solidariedade: rumo ao futuro compartilhado”, “Olhem para mim: meu corpo traz as marcas”, foram abordados em auditórios com centenas de profissionais da saúde e da educação. Uma limitação até então tem sido a dificuldade de mobilizar a participação mais relevante de agentes da segurança pública. Uma surpresa, a abrangência nacional de inscrições de profissionais das cinco regiões do país, especialmente a partir das redes dos NASFs, nos três últimos eventos, realizados de forma híbrida.
Em dez anos de existência, o PEPVPS atingiu diretamente 18.505 pessoas como público-alvo, além da abrangência indireta, a partir das consultorias e assessoria à imprensa. As fichas de avaliação das intervenções apontam para um aproveitamento significativo, tanto no sentido pessoal como profissionalmente, o que não garante, contudo, que o papel de sensibilização permaneça a longo prazo, como mostram alguns estudos.
Outros projetos desenvolvidos no Espaço Nise da Silveira & AFAB, como os Grupos Terapêuticos, o Comunidade de Fala e o CineMental reforçam as questões de promoção da saúde e prevenção de agravos na medida em que incidem diretamente nos fatores de proteção ao suicídio. Considerando os níveis de prevenção: universal, seletiva e indicada, as duas últimas são realizadas através da detecção precoce e cuidado longitudinal de pessoas com fatores de risco e/ou histórico de tentativas previas, enquanto a prevenção universal desenvolve-se partir de capacitação aos profissionais, conscientização da sociedade e sensibilização à imprensa para uma postura responsável sobre o tema, além da redução dos preconceitos e estigmas da sociedade referentes à saúde mental.
Criado na mesma época, também há dez anos, o Grupo de Trabalho Integrado de Enfrentamento às Violência, é um coletivo interdisciplinar e intersetorial que visa o fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial referente especialmente às violências sexuais e autoinfligidas. A aproximação de profissionais das diversas linhas de frente do atendimento destas questões estreita laços que permitem uma comunicação mais efetiva. Além de propiciar a criação de novos serviços e fóruns de discussão sobre a necessidade da qualificação do cuidado em relação às violências, compreendidas como fatores de risco ao suicídio. Foram produtos deste coletivo um serviço de Matriciamento em Violência Sexual, o Fórum Permanente de Saúde Mental da Região Central, o Fórum de Enfrentamento a Violência contra as Mulheres de Santa Maria/RS e o Centro de Referência em Atendimento Infanto-juvenil (CRAI), que deve ser inaugurado em breve na cidade.
Outros desdobramentos do PEPVPS foram a inserção de uma das coordenadoras na diretoria da Associação Brasileira de Prevenção do Suicídio (ABEPS) como vice-presidente e a coorganização de um livro sobre o tema, denominado “Suicídio: complexidade e urgências na cena contemporânea” que será lançado em agosto/24, no V Congresso Brasileiro de Prevenção do Suicídio, em Brasília.
A questão da prevenção do suicídio, compreendido como um tema tão complexo e multideterminado exige uma multiplicidade de estratégias clínicas, sociais e referentes às políticas públicas. É papel das universidades se debruçarem sobre o tema com dispositivos de cuidado e de capacitação continuados. O PEPVPS tenta cumprir uma parcela desta tarefa, promovendo educação em saúde, qualificação nos processos de trabalho e nas linhas de cuidado, na humanização e na ampliação da clínica em busca de uma atenção baseada na integralidade do cuidado.