A medicalização da vida tornou-se objeto de estudo na contemporaneidade, sendo uma de suas facetas preocupantes a crescente medicamentalização do sofrimento. Amplia-se a necessidade de um debate qualificado sobre o atual uso excessivo de psicofármacos, o que envolve pensar em contextos de prescrição e também de desprescrição.
A presente pesquisa de doutorado teve como objetivos cartografar experiências de redução/interrupção do uso prolongado de psicofármacos, analisar propostas de redução gradual e narrar experiências envolvidas nas suas tentativas de redução/interrupção. O método utilizado foi o cartográfico e a produção de dados aconteceu em duas etapas: 1) análise de 3 guias elaborados por experts por experiência; 2) entrevistas com pessoas que experimentaram reduzir ou cessar o uso de psicofármacos.
Os guias analisados foram a proposta canadense da Gestão Autônoma da Medicação (GAM) e as propostas norte-americanas The Withdrawal Project (TWP) e o Guia de Redução de Danos para a Saída de Drogas Psiquiátricas (versão traduzida para o português). Os guias se propõem a fornecer subsídios para que a opção de parar de tomar psicofármacos seja uma escolha ponderada de busca de saúde - e não uma escolha intempestiva - refletindo sobre indicações, diagnósticos em saúde/doença mental, efeitos desejáveis/indesejáveis das medicações e abstinência esperada caso se faça a opção de retirá-los, num processo que precisa ser lento e gradual. A análise dos guias proporcionou também uma reflexão sobre a Redução de Danos voltada às drogas prescritas.
Na segunda etapa de pesquisa, as entrevistas foram transformadas em narrativas e analisadas. As narrativas são testemunhos de pessoas brasileiras, usuárias dos serviços do SUS, que passaram por diversas internações psiquiátricas ao longo de suas vidas e utilizaram vários tipos de psicofármacos. Os testumunhos proporcionaram entrar em contato com o pharmakon – o ponto em que a substância pode ser simultaneamente veneno e remédio, que pode causar mal-estar e alívio, que é promessa de sanidade e ao mesmo tempo rótulo assinalador da loucura.
Aproximações entre os testumunhos levaram à análise os modos singulares de gestão da medicação realizadas por cada usuário, a posição experimentada por quem se supõe tomar medicação sem prazo para o fim e, ao mesmo tempo, a força dos coletivos para construção de alternativas de cuidado, em meio a tantas violências sofridas. São testumunhos da história da reforma psiquiátrica no Brasil, proprocionando reflexões sobre surto e crise, nos fazendo refletir sobre o medicamento que pode ser uma panaceia ou um recurso para o cuidado em saúde.