O presente trabalho consiste em um relato de experiência que acompanha um encontro meu com uma mulher a quem chamarei de Lilian. Encontro que ocorreu em um CAPS AD de uma cidade do interior do Pará, onde desenvolvia um trabalho como estagiária.
O evento relatado ocorre durante a pandemia, momento marcado pela contrarreforma psiquiátrica com o aprofundamento da precarização na rede de atenção psicossocial e retrocessos na política de saúde mental, com a retirada da redução de danos enquanto diretriz de cuidado ao uso de substâncias psicoativas (SPAs), além do incentivo federal a comunidades terapêuticas que reafirmam a lógica manicomial.
A escuta das narrativas de Lilian nos permite questionar sobre que lugar é possível para sua existência habitar? A história de vida de Lilian demonstra o duro cotidiano de alguém que faz uso de SPAs e é atravessada por diversos marcadores sociais: mulher, negra, pobre e nortista.
O trabalho tem como objetivo, a partir do método narrativo, problematizar os modelos de saúde mental que ganham forma no cotidiano, bem como refletir acerca das dificuldades e possibilidades no campo das SPAs em território amazônico. Dessa forma, buscamos reafirmar a importância de um cuidado artesanal, aliado à redução de danos, a perspectiva de um trabalho vivo e a produção de cidadania.
Visualizei Lilian pela primeira vez enquanto tomava um café, ela estava sentada na sala de espera meio encolhida na cadeira. Ouvi alguns comentários sobre sua situação, havia ido ao serviço após uma tentativa de suicídio. Foi atendida e em seguida resolveu passar o resto do dia no serviço, pois não queria retornar para sua casa.
Busquei me aproximar com o intuito simples de traçar uma conversa. Desde então conversamos por vários dias seguidos. Suas 3 filhas mais velhas estavam institucionalizadas em serviço de acolhimento e um filho, recém-nascido, havia sido afastado dela sob a justificativa de que não possuía condições de cuidar da criança. A ruptura do convívio com os filhos sem dúvida mobilizou um intenso sofrimento em Lilian.
Quando questionada sobre a sua primeira lembrança com o uso de substâncias, pensava em sua irmã que a convidava junto aos amigos para fazer uso de maconha em um dos igarapés da cidade. Mas foi com um namorado que experimentou óxi pela primeira vez e desde então a droga esteve junto a ela, bem como nas relações que teve posteriormente.
Falamos sobre sua relação com as filhas, sobre algumas de suas dores, amores, desejos e sonhos. Recordava com afeto os momentos em que levava suas filhas para passear na praça e das vezes em que fazia tiaras para elas. Propus que fizéssemos tiaras para que ela pudesse levar como presente as filhas quando fosse visitá-las.
No decorrer do processo de confecção das tiaras, narrou experiências envolvendo relações de solidariedade na rua, como no período em que estava “jogada”, sendo protegida e cuidada por uma outra usuária do CAPS AD. E episódios de extrema violência em que chegou a escapar de tentativas de violência sexual, além de ter sido torturada pela polícia ainda no período em que estava grávida do seu último filho.
Lilian se agarrava a única coisa que parecia lhe restar, a sua casa. Espaço, que inicialmente era propriedade de seu ex-companheiro, e representava uma esperança para retomar a guarda dos filhos. Um dia veio uma crise, um grito diante da iminente perda dos filhos. Lilian havia perdido a casa requerida pelo ex-companheiro na justiça. Queria acabar com o sofrimento naquele momento até que saiu porta afora.
Foi abordada por um casal evangélico que tentava retirar “os demônios” presentes em Lilian. Seu corpo caiu no chão, ajoelhou-se e orou junto ao casal. Convidaram-na para visitar sua igreja. Ela concordou e passou a se acalmar. Retornou para o serviço e durante a noite foi à igreja.
Naquela mesma noite, usou o dobro de óxi a que estava acostumada e amanheceu perambulando pelas ruas até o horário que o CAPS AD iria abrir. Em nosso último encontro, veio ao serviço se despedir de mim, dizendo com um ar de esperança “ Eu vou me internar. Eu vou me curar para ficar com as minhas filhas”. Despedida dolorida, pois sabia da realidade das internações em instituições religiosas.
O encontro com Lilian denuncia uma série de desafios na produção de um cuidado em liberdade, comprometido com a autonomia e de base comunitária prevista pelo SUS. Em sua trajetória se faz presente a rede de atenção psicossocial a partir de sua passagem pelo CAPS AD; sua casa; as ruas; o aparato jurídico-policial; as igrejas neopentecostais; comunidades terapêuticas. Percebemos diferentes dispositivos que também são produzidos no interior de diferentes modelos de saúde mental.
Os percursos realizados por Lilian deixam evidentes como um modelo de saúde mental que se hegemonizou fracassa insistentemente em termos de produção de cuidado à medida em que estão fundamentados numa lógica violenta de colonização do sofrimento, pois o inserem, não sem resistência, em um lugar de desumanização. Para essas existências o destino deve ser o da exclusão, inseridos em circuitos que o marginalizam cada vez mais.
Lilian é frequentemente capturada pelo biopoder em suas diversas formas, seja através de sua patologização e criminalização ou pela religião que se apresenta com força significativa na experiência da região. A religião é um elemento importante no que diz respeito à integralidade da saúde, mas aparece em Lilian enquanto um instrumento de controle e moralização. Sob essa perspectiva não há um cuidado em liberdade possível, que seja pautado na emancipação dos sujeitos.
Percebemos como Lilian passa por uma série de interdições e violências naturalizadas devido ao estigma associado a ela. O racismo e as práticas coloniais que se atualizam em nosso cotidiano definem, inclusive, que existências tem direito ao cuidado e quais não tem. Ela tem o exercício da maternidade negado e justificado pelo seu suposto fracasso ao desviar de uma noção de maternidade burguesa, branca e cristã.
Então, que lugar é reservado para essas pessoas na cidade? O sujeito da droga figura no imaginário atualmente como o novo louco e para ele há um itinerário que se impõe com força, envolvendo comunidades terapêuticas, internações em clínicas psiquiátricas e a administração de medicações excessivas que corresponde a uma agenda de saúde mental, mercadológica e neoliberal.
A precarização da RAPS percebida em CAPS AD de uma cidade do interior e a dificuldade em acessar diversos serviços de saúde por vezes deixam o sujeito em “becos sem saída” que reafirmam o afastamento da vida social, da cidade a esses sujeitos como única possibilidade.
Contudo, existem os itinerários próprios de cuidado, seja em um passeio com as filhas na praça, no artesanato, no compartilhamento de uma música, um brega com amigos a beira de um igarapé da cidade, na relação de proteção entre mulheres na rua, entre outros que se criam enquanto resistência a uma lógica perversa do poder.
Portanto, narrar sua história garante o aparecimento do sujeito com suas singularidades, com uma cultura própria e saberes sobre a sua saúde que devem ser considerados na produção do cuidado de modo a produzir fissuras com as cadeias violentas no campo do uso de substâncias psicoativas.