Este resumo apresenta um relato de experiência profissional sistematizada no campo da psicologia social durante o atendimento psicossocial de refugiados climáticos nas enchentes do Rio Grande do Sul, RS, Brasil. O cenário de atuação se deu ao longo de uma semana em um abrigo da cidade de Porto Alegre, junto a uma equipe do serviço social e saúde voltadas para mais de 100 pessoas de diversas origens sociais e faixas etárias. O trabalho realizado envolveu o preenchimento de dados pessoais e de saúde, repasse de informação sobre os programas governamentais, seus prazos, portarias, e indefinições até o momento da acolhida, escuta das angústias em relação à situação de desabrigados, ao voluntariado, à violência dentro do abrigo, encaminhamento e ponte com profissionais da saúde, além da escuta individual de queixas referentes à saúde mental. Três questões se destacaram durante a vivência profissional: I. o papel do Estado na prevenção do escalonamento dos impactos ambientais nas diferentes populações atingidas por desastres, II. a atuação de profissionais da psicologia junto às equipes de assistência social e de saúde e III. o papel dos saberes e epistemologias não hegemônicas na produção de políticas públicas. A frase que compõe o título foi dita por uma assistente social durante um momento em que um refugiado negro esperava pelo atendimento da secretaria para uma questão pessoal urgente, tal homem já tinha aguardado por horas e passou a tarde inteira esperando uma resposta dos voluntários. Ao ser questionada sobre este homem ser o mesmo ou outra pessoa na fila de atendimento, ela disse não ser possível constatar uma vez que, em sua percepção, o boné deixava o desabrigado iguais aos demais. Embora tal episódio tenha ocorrido recentemente e dentro de uma região com uma cultura regional própria dentro do Brasil, Frantz Fanon (2020) já descrevia na França do século XX que se descobriu um objeto em meio a outros objetos quando se deparou com sua condição racial, segundo o pensador, em um mundo branco o homem de cor encontra dificuldade na elaboração do seu esquema corporal passando a se conhecer em terceira pessoa. A cena presenciada no abrigo em questão evoca esta terceira pessoa que percebe o homem negro como um representante de um grupo sem individualidade e agência. Retornando ao cenário brasileiro, quando são considerados os dados do IBGE (2021), é possível notar que pessoas negras também protagonizam os piores indicadores sociais no que se refere ao acesso à renda, trabalho e violência, incluindo a dificuldade de acesso a serviços de saúde, fato que indica uma calamidade social precedente acumulada à calamidade climática que atingiu o estado e a negligência estatal no que se refere à garantia de direitos humanos básicos. Ignorar a perspectiva social e histórica decorrente do Brasil ter sido um país colonizado antinegro e antindígena na ocorrência de desastres climáticos também ocasiona a cegueira de políticas públicas que, conforme Noal (2018), fica alheia aos conflitos e vínculos interpessoais e grupais onde o desastre acontece como eixo prioritário do processo de cuidado em saúde mental. A ansiedade climática nestes termos pode ser compreendida não somente como a angústia ou medo constante da repetição dos desastres em si, mas como o acúmulo histórico de humilhação social, prejuízo no acesso à assistência social e serviços de saúde em condições de mínima alteração climática ou modificação territorial por ação humana. A atuação de profissionais da saúde e assistência social voluntários, nesse sentido, quando restrita à formação acadêmica, muitas vezes carentes de discussões sobre marcadores sociais da diferença, pode tanto precarizar a qualidade do suporte oferecido quanto reincidir violências sociais já vivenciadas anteriormente por esta população. No que tange à formação e atuação de profissionais da psicologia, ficou nítida a necessidade de valorização das singularidades negras envolvidas nos processos de atenção psicossocial adotando uma perspectiva contra-colonial, como afirma Nego Bispo (2023), mirando existências além do olhar eurocentrado que orienta as ciências hegemônicas, e não somente a ideia de uma ecologia separada das problemáticas sociais e étnico- raciais dos atingidos. Para Bispo (2023), o conceito de ecologia exclui a produção milenar de saberes africanos e indígenas que compõe o território brasileiro, sendo um pilar acadêmico- mercadológico da produção de conhecimento e de soluções paliativas para problemas complexos enraizados nas consequências dos processos coloniais. Ainda na perspectiva do autor, as nomenclaturas e conceitos acadêmicos relacionados às problemáticas ambientais pouco irão contribuir para uma relação sustentável com a natureza ao reproduzirem interesses institucionais e hegemônicos em detrimento da manutenção dos biomas e modos mais viáveis de coexistência. A legitimação de epistemologias ligadas a culturas não eurocentradas negras e indígenas é apontado por Bispo (2023) como alternativas para a construção de sociedades baseadas em valores civilizatórios que não excluem a integridade territorial não- humana. Partindo desta concepção, direitos humanos e direitos e da natureza não se distinguem de forma hierárquica ou tendo em vista a exploração irrefreada de recursos naturais por imposição ideológica. No campo da saúde mental esta discussão tende a impactar tanto a produção de diagnósticos psicológicos sobre a experiências atingidas por desastres (Rodrigues, 2021) quanto no fortalecimento ou enfraquecimento do trabalho em equipes de saúde e assistência e, por conseguinte, no serviço prestado ao público- alvo. Conclui-se, portanto, que não é possível pensar a mitigação de desastres ambientais como as enchentes ocorridas no Rio Grande do Sul, Brasil, sem realizar uma ampla reflexão sobre os determinantes sociais e a complexidade histórico- social envolvidos na produção dos recursos contra os impactos e danos decorrentes sobre as populações mais vulnerabilizadas. Da mesma forma, não há como pensar alternativas sociais mais viáveis valendo-se do racismo em suas variadas dimensões, incluindo a supressão de saberes e tecnologias advindas de culturas constantemente agredidas pelo modelo eurocentrado- capitalista que molda a geopolítica mundial atualizando a colonialidade instaurada em tempos supostamente remotos. Contrapondo o discurso que massifica a dignidade de populações não- brancas e universaliza o eurocentrismo, é necessário tratar qualitativa e politicamente a atenção psicossocial de atingidos por desastres, assim como fomentar recursivamente a prevenção em saúde mental ao fortalecer políticas públicas comprometidas com novos modelos de sociedade.