A transgeneridade se configura a partir da vivência de sujeitos que foram impostos à determinado gênero ao nascer de acordo com o sexo, mas que experienciam incompatibilidade na identificação com o gênero imposto. A comunidade de pessoas trans é diversa, sendo composta por pessoas transmasculinas, transfemininas, não binários e outras localizações dentro da subjetivação identitária de gênero. Sendo assim, a transgeneridade é um termo guarda-chuva que agrega vivências plurais de existir e estar no mundo, que vão além das dicotomias de sexo (feminino/masculino), gênero (homem/mulher) e determinismo biológicos e sociais, o qual cada sujeito tece sua vivência de maneira singular dentro dos panoramas de gênero.
Ao abranger as discussões sobre gênero, ser homem ou mulher não diz respeito a uma essência anterior à existência humana, pois gênero e sexo são resultados de construções sociais advindas do que está instituído nos discursos e práticas da sociedade, inclusive no que tange o cuidado em saúde, podendo, assim, perpassar por diferentes (re)elaborações que corroboram para as diversas expressões de gênero existentes e válidas.
Neste contexto, homens trans fazem parte da comunidade transmasculinas, pois são pessoas que ao nascer foram impostas enquanto mulheres a partir de determinismos biológicos e sociais, mas entendem-se e se identificam enquanto homens. Cada uma destas vivências perpassa por demandas em saúde singulares, visto que nem todos optam por terapia hormonal ou cirurgias masculinizadoras, seja por não querer, seja por limitações econômicas ou sociais que dificultam seu acesso.
Em relação ao acesso à saúde de pessoas trans, esta realidade ainda é cercada por alta marginalização e exclusão social. Quanto a este acesso, pessoas trans ainda têm suas vivências permeadas por barreiras sociais que trazem à tona estigmas, preconceito e discriminação, corroborando para o distanciamento destes sujeitos dos serviços de saúde da qual necessitam. Ainda é possível observar nas condutas e práticas, a violação do direito fundamental do acesso a saúde de maneira digna e humanizada, devido ao não reconhecimento destes corpos como existentes e válidos na sociedade.
O Sistema Único de Saúde (SUS) é composto por princípios e diretrizes que garantem a sua implantação de maneira a promover uma atenção universal e integral à saúde. Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 definiu no Art. 196 que “a saúde é um direito de todos e dever do Estado” e consta na Legislação do SUS, em seu artigo segundo, que “a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício”.
Contudo, há brasileiros que se encontram em situações de vulnerabilidade em razão das desigualdades sociais marcadas por questões raciais, étnicas, de sexualidade, econômicas e de gênero, e que, ao procurar serviços em saúde, esbarram em desafios que dificultam o acesso digno e humanizado. Dentre estes, a população trans se localiza entre as diversas parcelas da população em que são direcionadas políticas públicas para atender demandas específicas de indivíduos que se encontram em vulnerabilidade social e necessitam de um olhar mais atento e humanizado do Sistema de Saúde.
Dentre as demandas no acesso à saúde de transmasculinos, está a possibilidade da gestação. No brasil, esta realidade ainda é invisibilizada, pois pouco se discute a respeito da possibilidade de homens trans engravidarem, devido ao imaginário social de que a função gestacional é inerente a mulheres cis. Assim, há diversos desafios vivenciados durante este processo, o qual há a presença de questões relacionadas à invalidação da identidade de gênero, conflitos no processo de transição de gênero e determinismos biológicos.
Na sociedade atual, a estrutura cisnormativa ainda domina concepções a respeito da gestação com marcadores femininos e relacionada à feminilidade cisgênera. O imaginário social a respeito da fecundidade como marco de feminilidade reflete no não acolhimento adequado de pessoas trans, pois o processo de gestar ainda não é visto com um meio para gerar um filho, o que pode fazer parte da experiência e construção de (trans)masculinidades.
As idealizações cisnormativas impostas a respeito da gravidez corroboram para a discriminação, exclusão e preconceito no acolhimento de pessoas transmasculinas, legitimando diferenças no atendimento que mantém desigualdades sociais. Em consonância a isso, as políticas públicas direcionadas à reprodução, fertilidade e gestação pouco incluem corpos trans como possíveis de gerar uma criança, o que gera invisibilidade e despreparo na área assistencial.
Desta maneira, torna-se imprescindível a busca por escuta e compreensão a respeito da maneira como pessoas transmasculinas vivenciam o acesso a saúde durante a gestação, o que direcionou o andar desta pesquisa. Desta forma, teve como objetivo investigar e compreender como o acolhimento e cuidado nos serviços de saúde foram vivenciados por uma pessoa transmasculinas nos diferentes níveis de atenção.
A presente pesquisa utilizou instrumentos e métodos qualitativos, descritivos e exploratórios, com o objetivo de acessar tais experiências e vivências destes sujeitos, buscando aproximação dos sentidos que os próprios sujeitos constroem ao entrar em contato com práticas assistenciais, a fim de contribuir para a elaboração de ações e condutas humanizadas que abranjam tal realidade.
Assim, foi realizada uma entrevista semi-estruturada, na qual a análise dos dados se deu a partir do método da análise de conteúdo, o que gerou como resultado quatro temas que reúnem trechos e correlações de sentidos. Os temas gerados foram divididos em quatro tempos, sendo: “Primeiro – Descoberta da gravidez e como engravidou: situação de vulnerabilidade e sobrecarga psicológica”; “Segundo – Percurso da gestação e a busca por assistência em saúde: desafios e barreiras”; “Terceiro – Acolhimento e cuidado em saúde: apesar de experiências negativas, ainda há esperança!”; “Quarto – Eu sou o pai e gestei esta criança: a luta pela Declaração de Nascido Vivo”.
Foram encontrados enquanto resultados sentidos de vulnerabilidade, dificuldade em acessar atendimentos e serviços em saúde, despreparo assistencial, não acolhimento e negligência no cuidado, que apontam para a necessidade de desenvolvimento de ações que visem a criação e ampliação de práticas no âmbito do acolhimento e cuidado, a fim de assegurar o direito à saúde a estes usuários de maneira humanizada.
A sensibilidade das vivencias descritas por um homem trans que necessita de acolhimento e cuidado em saúde durante o período gestacional evoca múltiplas inquietações. Neste trabalho, as experiencias vividas pelo usuário foram descritas de maneira a abordar a dimensão dos fatos de acordo com o percurso gestacional, sendo ressaltada as reverberações que tais acontecimentos trouxeram à sua experiência e como estas influenciam em seu acesso à saúde.
Pôde-se perceber o nível de (des)preparo dos profissionais em saúde, a maneira como ocorre ou não o estabelecimento de vínculos, os desafios presentes nos protocolos de atendimento e garantia de serviços, e como influenciam na experiencia positiva e negativa do usuário, sendo o acolhimento uma das tecnologias essenciais para efetivar a oferta de cuidado e produção de saúde. Além disso, atravessamentos sociais como ser a única pessoa a cuidar do filho, estudar e trabalhar geram barreiras de acesso a diversos âmbitos na vida destes sujeitos, inclusive na disponibilidade para participar de pesquisas e discussões referentes às suas diferentes demandas.
Por fim, reforça-se a necessidade de um maior interesse e aprofundamento da comunidade acadêmica ao se debruçar em temas que envolvem as vivências singulares por pessoas trans que gestam, a fim de impulsionar maior inclusão e visibilidade, com o intuito de contribuir para um SUS universal, equitativo, igualitário e integral.