Apresentação: Este resumo apresenta uma narrativa de acompanhamento terapêutico em saúde mental a partir da vivência de uma psicóloga residente do Programa de Saúde Mental Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, durante o contexto das enchentes de maio de 2024, no município de Porto Alegre/RS. Tem como objetivo discutir as práticas de cuidado e os modelos vigentes nas equipes de saúde mental do município de Porto Alegre, onde se evidenciam os efeitos do poder biomédico e da lógica manicomial sobre as pessoas diagnosticadas com transtornos no campo da saúde mental. Desenvolvimento: Em maio de 2024 o município de Porto Alegre vivenciou a pior enchente de sua história, assim como outros municípios do estado do Rio Grande do Sul, levando milhares de pessoas a buscarem alojamentos temporários. Neste contexto foi realizado o acompanhamento terapêutico de uma abrigada com quem a autora principal já tinha vínculo prévio, a partir do lugar de psicóloga residente da rede de saúde mental do município. Frida (nome fictício) tem 34 anos, é moradora do bairro Sarandi, vive na pobreza sendo beneficiária do BPC. Sua história é atravessada por questões importantes de sofrimento psíquico, relacionado a uma vida de exclusão, com dificuldades de acesso a bens e serviços básicos, exposição a violência intrafamiliar e à micropolítica violenta dos territórios onde reside e também vítima da negligência e da violência do Estado. Ao longo do mês de maio, vivenciou diversas situações de estigmatização e patologização de seu sofrimento e desqualificação de sua subjetividade, a partir do ingresso da mesma em alojamentos de refugiados climáticos. Recorta-se nesse relato uma das cenas de violência que Frida sofreu, promovida pelo poder de agentes do Estado, que deveriam estar a serviço da proteção e do cuidado, mas se revelaram operar a partir do discurso biomédico patologizador. No alojamento onde Frida e sua mãe estão alojadas, Frida questiona a tutela e a infantilização com que tem sido tratada, pois percebe-se sendo colocada no lugar de incapaz, pelo fato de ter um diagnóstico de saúde mental. Em algumas situações, entra em conflito com os organizadores do alojamento por conta disso. Em uma noite, numa discussão acalorada sobre o acesso e o controle de suas medicações, ela sofre uma agressão física de um dos trabalhadores do abrigo, e revida com agressividade e irritabilidade. Os atores envolvidos nessa cena entendem o comportamento de Frida como um “surto psiquiátrico” e acionam a SAMU e a Brigada Militar para que seja removida a um Plantão de Emergência em Saúde Mental. No dia seguinte, ao tomar conhecimento do ocorrido, vou em busca de Frida e a encontro em uso de medicação injetável que não costuma usar, relatando o sentimento de injustiça, trauma e revitimização, mencionando ter sofrido violência policial e maus tratos e estigmatização ao chegar no serviço de emergência psiquiátrica ao qual foi levada (estabelecimento não previsto na RAPS, que prevê que os pontos de Atenção de Urgência e Emergência devem inserir a avaliação das situações de saúde mental, mas que no município de Porto Alegre são estruturas específicas para atendimento dos casos avaliação de crises, com vistas a internação psiquiátrica). Nesse estabelecimento, Frida é mantida contida por horas, medicada sem seu consentimento, e todo seu discurso é tomado pela equipe como parte integrante de um “surto psicótico” conforme se confirma pela nota de alta. Em nenhum momento é citada a violência sofrida e relatada por Frida aos profissionais que a atendem no plantão, que a avaliam como “solilóquia, coprolálica, delirante e sem juízo crítico”. Frida refere o sofrimento profundo e o trauma de perder aquilo que ainda lhe restava: sua dignidade. Resultados: Pela experiência acompanhada, constatamos o quanto em um momento de emergência e desastres as ações em saúde tendem a ser realizadas de forma fragmentada e desarticuladas da historicidade do caso e do contexto social vivenciado, influenciadas por estigmas e preconceitos. Viu-se também que o modus operandi da equipe de saúde mental do Plantão de Emergência em Saúde Mental denuncia um fazer manicomial, com procedimentos padronizados, onde a escuta da singularidade do caso se ausenta, produzindo a desumanização, estigmatização do sujeito e de sua história, geram revitimização e um trauma que interfere diretamente na capacidade do sujeito de elaborar a situação sofrida e as demais questões de perda decorrentes de seu contexto de vida atual. Para além dos danos causados à usuária, “disfarçados” de cuidado em saúde mental, também fica uma questão sobre o interesse deste município e das forças que operam a permanência de um serviço que trabalha nesta lógica manicomial. Afinal, interessa a quem manter leitos de emergência psiquiátrica? Por último, evidencia-se o poder do discurso da saúde sobre as pessoas e suas vidas, podendo produzir cuidado, saúde, mas também violências. O Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador presente no serviço citado acima gera uma hierarquização das relações, na qual o saber médico impera sobre outros saberes, que cumprem um papel secundário, incluindo o saber da própria usuária que não é validado, tomando-a apenas como um objeto, e seu discurso como parte integrante do que a psiquiatria entende como sintomatologia da doença. Essa compreensão justifica procedimentos centrados na sintomatologia e em consequência, práticas predominantemente medicamentosas, sem qualquer escuta da usuária. O saber médico, operado pelos trabalhadores de saúde tomados pelos manicômios mentais, se apresenta, dessa forma, como o próprio Alienista do conto Machadiano. Considerações finais: A reforma psiquiátrica trouxe mudanças na concepção do processo saúde-adoecimento, no modelo teórico e assistencial que organiza e sustenta as práticas dos profissionais de saúde e sustenta o universo de ações e valores culturais. No entanto, conforme o relato acima demonstra, não está garantida, mesmo sendo a diretriz ético política nacionalmente instituída pela Lei 10.216 de 2001. O paradigma Psicossocial, se operacionalizado pelas equipes de saúde, situa a Saúde Mental no campo da Saúde Coletiva, compreendendo o processo saúde-doença como resultante de processos sociais complexos e que demandam uma abordagem interdisciplinar, integral e em rede, colocando o sujeito no centro do cuidado e a escuta como condição basal para toda prática em saúde. É somente a partir da operacionalização dos princípios antimanicomiais e do enfrentamento a instituições totalizantes que podemos garantir saúde mental e dignidade aos usuários do SUS.