Em 1970, ano do bicentenário de Beethoven, dois rebeldes criadores se atreveram a homenagear o compositor de maneira pouco usual: decidiram a dissolver sua identidade em diferentes propostas extramusicais. Isso ocorria numa época em que a própria ideia de música como linguagem autônoma vinha sendo questionada. Mauricio Kagel, argentino-alemão, inventor do teatro instrumental, produziu a música-filme “Ludwig Van”. Na obra, Beethoven, num cenário distópico, caminha pelas ruínas de sua própria música. Enquanto isso, nos “Mares do Sul”, Gilberto Mendes apresentava “Atualidades: Kreutzer 70”, em que um pianista e uma violinista entram em cena sem emitir um único som; os instrumentos mudos compondo a mise- en-scène. Ouve-se a Sonata a Kreutzer, novela de Leon Tolstói enquanto a trama se desenrola. A música de Beethoven silenciada, fragmentada, transformada em cena.
Passados 50 anos, vale retomar o compositor exemplar, homenageando-o pela passagem dos 250 anos de seu nascimento. Para tanto, optamos por uma vertente muito relevante, mas nem sempre abordada com ênfase. A obra beethoveniana manifesta-se, em grande medida, pelo uso sistemático de contrastes (intensidades, silêncios e fragmentos melódicos), fazendo emergir uma teatralidade na performance, um potencial dramático que já se encontra latente na partitura. Convertido em persona inusual, o compositor, assim como sua estética particular, abriria as portas para outras estéticas inesperadas, como o hit “Roll over Beethoven”, de Chuck Berry (1956). No “embalo” do rock que despontava, a letra “notificava” sobre a novidade e ainda pedia ao compositor para contar a notícia a Tchaikovsky... Se esta parece uma fala ingênua e despretensiosa, de outra parte atesta a autoridade do compositor germânico. Daí a apropriação de sua música em versões as mais inusitadas (“Hooked on classics”, Valdo de los Ríos, Richard Clayderman) ou usos, em particular, como trilha musical e Muzak.
Pensando dessa maneira, trazemos à cena Beethoven como nosso anfitrião para o 16º Encontro Internacional de Música e Mídia, justamente dedicado à encenação da música e à teatralidade performática que emerge da obra musical.
Mise-en-scène é uma expressão que, na língua francesa, traduz-se por encenação. Historicamente, passou estender sua significação a “posicionamento” em uma cena, referindo-se aos movimentos dos personagens e ao lugar dos objetos cenográficos. na produção teatral francesa do século XIX. Com o passar do tempo, passou-se a denominar mise-en-scène o conjunto de elementos que participam do enquadramento de uma cena. O cinema veio a se apropriar da ideia, entendendo-a como a maneira segundo a qual um diretor constrói a cena. Para além dos elementos já presentes no teatro (atores, direção de arte etc.), o cinema acrescenta os elementos de natureza técnica da direção de filme (enquadramentos de câmera, efeitos de luz etc.).
O papel da música na dramaturgia será incontestável. Mas a própria música, em suas diferentes modalidades performáticas, se põe em cena e põe em cena o que ela manifesta, em sua realidade material e sígnica. A música se põe em cena de diversas maneiras. Inicialmente, pelo corpo: na performance, todo o corpo exprime uma mensagem que é transmitida pela emissão vocal, estilo interpretativo, gestualidade. Da voz mais próxima ao discurso falado à melodia de mais ampla tessitura compõe-se um discurso de natureza teatral, cujo teor dramático adquire diversas feições – do trágico ao picaresco. Em tais performances, a obra pode seguir uma partitura ou texto fixo, ou mesmo realizar-se a partir da improvisação, em maior ou menor grau. A adoção das tecnologias diversas altera as dimensões do corpo, amplificando-o, reduzindo-o, transportando-o para outras instâncias midiáticas (fixação em plataformas, meios de fixação) o que, vale dizer, modificam a presença em cena. Ao converter-se em seus múltiplos mediatizados, a performance cria uma forma que se torna memorável, podendo estender-se ad infinitum. Se não nos foi possível conhecer a voz de Farinelli ou de Maria Malibran senão por meio de relatos, Enrico Caruso existe e persiste em todas a plataformas midiáticas, desde seus primeiros registros centenários.
Uma outra maneira que configura a música em cena é dada pelas poéticas e meios de expressão (timbres, arranjo, instrumentação etc.) aliados ao espaço físico para o qual se destina. O autor/compositor concebe sua obra para ser executada num espaço específico, aberto ou fechado: dos coretos ao grande teatro, passando pelos picadeiros de circo, transmissões eletrônicas em rede. A performance da obra está, em grande medida, sujeita às condições técnicas do seu espaço cênico. De Bayreuth ao Lollapalooza.
Para que a música se ponha em cena, faz-se necessário levar em conta as condições de produção da realização da obra. Quando se trata de espetáculo/concerto ao vivo, lida-se com financiamentos, captação de recursos, logística (contratação de artistas, técnicos, seguros, infraestrutura do evento). Se o projeto se caracteriza pela fixação em plataforma midiática (fonograma, filme, videoclipe, app etc.) considerem-se, ainda, as condições de divulgação e difusão.
Postos estes parâmetros iniciais, o 16º Encontro Internacional de Música e Mídia pretende abordar as diversas configurações da música que se põe em cena, baseando-se nos seguintes pressupostos:
O 16º Encontro pretende, assim, trazer à discussão as diversas situações em que a música é posta em cena; seus sucessivos processos de ressignificação e geração de novos textos que, por sua vez, estão, em grande medida, relacionados às políticas públicas e instituições que atuam no sentido de promover e difundir as obras. Como organizadores convidados externos, o MusiMid contará nesta edição com a valorosa colaboração dos Professores Doutores Marcelo Bergamin Conter (IFRS) e Anselmo Guerra (UFG) e convida os interessados a submeterem propostas de trabalho, a fim de serem expostas e debatidas durante o evento. Propõem-se três eixos temáticos, que organizarão a programação e a recepção de propostas:
Comissão Organizadora
Raphael Fernandes Lopes Farias
Fernando Magre
Heloísa de Araújo Duarte Heloísa Valente
Marcelo Bergamin Conter
Ricardo Santhiago
Centro de Estudos em Música e Mídia - MusiMid
Coordenadora: Profª Drª Heloísa de A. Duarte Valente
musimid@gmail.com
Secretário: Raphael F. Lopes Farias
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