Vida de artista...
Nasce uma estrela é um longa-metragem que atravessa o tempo. Lançado, inicialmente, em 1937, passou por novas versões em 1954, 1976 e 2018. Sempre protagonizado por cantoras-atrizes de prestígio no cenário musical estadunidense, o melodrama narra a história de amor entre uma cantora pouco conhecida e um cantor já consagrado e famoso. Enquanto a primeira atinge, aos poucos, o estrelato; o segundo sucumbe ao álcool, destruindo sua carreira e a própria vida. Tendo como cenários períodos significativos (pós-Grande depressão, era dos musicais pós-II Guerra, ascensão do rock e feminismo, 3º. Milênio e questões acerca de igualdade de gênero), todas as versões tiveram indicações ao Oscar.
O que nos diz este enredo, para além do tão poderoso tema “o amor pode tudo”; “só o amor constrói” (dentre tantos adágios populares) sobre o tema? Os amantes são cantores, devotos da sua música. O desenrolar da trama desemboca em uma situação antagônica: enquanto ela ganha “brilho”, ele se “apaga”. Ambos terão sua trajetória artística pautada não apenas pelo seu modo de vida, seus esforços a que se submeteram para alcançar o seu lugar ao pódio, mas também pelas condições postas pelo ambiente em que vivem (compromissos com gravadoras, turnês, sucesso de público etc.). Esta narrativa de ficção – que parece encontrar coincidências com o mundo material, tomamos aqui como inspiração para o 19º Encontro Internacional de Música e Mídia, Vida de artista, este ano dedicada ao artista do universo da música, à sua pessoa e sua persona midiática; do talento à condição de ídolo/diva/celebridade/ícone/estrela, em processos de identificação que vão desde à performance, a sua transposição às mídias físicas (disco, filme, imprensa) e ao ambiente virtual. Antes de prosseguir, cabe uma breve digressão, a respeito.
Costuma-se crer que o século XX deu início ao sistema de geração e proliferação de ídolos, divas e celebridades, práticas que remontam a estruturas de séculos anteriores, sobretudo durante o período moderno. Com o crescente processo de expansão das linguagens midiáticas existentes – em especial publicações (livros, jornais), iconografia, assim como a circulação dos artistas em turnês, tornou-se possível identificar as diversas formas de culto ao indivíduo. É verdade que a conversão de indivíduos e personalidades em “ídolos”, remonta ao universo do teatro e da ópera, com o conceito de prima donna e a transformação de figuras de exímia virtuosidade em cena em personalidades centrais do espetáculo. No entanto, como aponta Edgar Morin (1989), a criação do fenômeno do star system ganhou força e capilaridade a partir da indústria do cinema e, principalmente, do progressivo interesse midiático não mais apenas pela produção do artista e/ou as obras, mas pela pessoa por trás, pelo “sujeito”.
Progressivamente, o "indivíduo" que atuava nos meios audiovisuais passou a ser convertido em sujeito de referência não apenas graças à sua ação pública (produção, criação, atuação), mas também privada (vida pessoal, gostos). A “cultura de Hollywood”, assim como a radiofônica, em suas mídias de cobertura intensiva expandiram-se vertiginosamente também em direção às diversas vertentes do universo da música, em particular a popular: a partir da segunda metade do século XX, cantores, bandas/grupos e músicos passaram a vivenciar um processo semelhante e que viria a culminar na “cultura de celebridades” cujo auge viria a ocorrer nas décadas de 1980, 1990 e início dos anos 2000. Esses mesmos indivíduos passariam a associar à sua pessoa a imagem de símbolos de identificação, de culto; quando não porta-vozes de grande mobilização social e política. Dessa forma, ultrapassam a difícil tarefa de atender a um forte potencial mercadológico, promovendo movimentação, a ponto de arrastar centenas e milhares de fãs a estádios esportivos, turnês e, mais recentemente, nas redes sociais. O mesmo processo se percebe no universo da performance que, progressivamente, foi se expandindo em direção a outras formas de comunicação midiática: o artista se se desdobra: seu corpo se multiplica em várias imagens (BAITELLO JR., 2005), passando por vários processos de ressignificação, a partir do seu envolvimento em um sem-número de novas linguagens artístico-criativas; particularmente, as audiovisuais, nas diversas plataformas midiáticas existentes.
O 19º Encontro Internacional de Mídia e Mídia se lança ao desafio de refletir acerca do processo de transformação de artistas em ídolos (BAITELLO, 2005), divas (SOARES; LINS; MANGABEIRA, 2020) e celebridades (FRANÇA; FREIRE FILHO; LANA; SIMÕES, 2014), em uma abordagem interdisciplinar. Em síntese, pretende-se problematizar o tema e tentar encontrar algumas respostas a questões: Como se constrói e produz um ídolo no campo da música? Como este ídolo se fixa como memória; isto é, como conquista a imortalidade na galeria dos “deuses midiáticos”? Em que medida o artista tem controle sobre suas formas criativas e sua atuação profissional?
Eixos temáticos – detalhamento:
- O artista em movimento, a música em deslocamento: circularidades, redes e midiatizações da música.
O presente eixo temático de apresentações pretende reunir trabalhos voltados à análise das redes, circulações e processos de construção midiática do artista em diferentes espaços, temporalidades e contextos. Privilegia-se a ideia de circularidade artística, de forma a promover o debate sobre como diferentes indivíduos atuaram e atuam na promoção de suas produções, na criação do artista e na representação criativa deste em meio a processos fluidos de deslocamento, trânsito e alternância de espaços/tempos. Tal proposta se expande, desta forma, tanto a ideia de circularidade, adaptabilidade e diacronia da produção musical em diferentes plataformas midiáticas (rádio, televisão, streaming) para os diferentes formatos de circulação artista (shows, redes sociais, turnês etc.).
- Do registro analógico às redes digitais: o artista, os gêneros musicais e a produção audiovisual.
Este eixo temático pretende reunir trabalhos voltados ao universo do suporte/formato, em especial suas adaptabilidades, e as diferentes maneiras como a música se faz presentes em meios físicos, virtuais e audiovisuais. Interessa, particularmente, o debate acerca da produção (e por desdobramento dos indivíduos) a partir das formas de produção criativa e artística, a exemplo de álbuns físicos, EPs digitais, videoclipes e performances gravadas, de forma a debater o fazer artístico-comercial em diálogo com mundo material e virtual. De forma conexa, este eixo se abre também a abordagens macro-analíticas, voltadas também aos gêneros musicais e à própria indústria audiovisual, visando analisar de que forma campos, setores e/ou movimentos artísticos lidam sob o aspecto social e histórico com diferentes suportes/formatos, dando origem a processos tradutórios (adaptações, versões nômades, no dizer de Paul Zumthor) com o objetivo atender a demandas diversas, com ênfase para as mercadológicas.
- Performances, memória e a construção dos ídolos: formas de sentir e lembrar de artistas consagrados e esquecidos.
Este eixo temático está estruturado em torno da problemática da memória e da construção de ídolos na música e nas diversas linguagens da mídia a partir de atos performáticos, o que inclui desde a dimensão da persona e do próprio artista até as formas de construção coletivas por parte de fãs, grupos, campos, indústrias da cultura e mídias. Pretende-se, em especial, reunir estudos que se dediquem a refletir sobre a figura do artista em sua interface com o tempo e a sociedade, de forma a compreender como este se torna símbolo de identificações, promovendo novas formas de organização, comportamento e agência em sociedade. A performance, enquanto ato de transmissão e fixação de memórias, é a espinha dorsal desse debate, seja ela ligada ao ato de “estar em cena” ou as formas de mediação posteriores, inclusive aquelas voltadas às práticas de rememoração entre lembrar e esquecer.
Comissão Científica
Fernando Pedro de Moraes
Igor Lemos Moreira
Juliano Oliveira
Marcos Júlio Sergl
Raphael Fernandes Lopes Farias
Sandro Figueredo
musimid19@gmail.com
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Coordenação Geral: Heloísa de A. Duarte Valente
Organização dos textos: Raphael F. Lopes Farias e Heloísa de A. Duarte Valente (editores)