No contexto nacional, o debate sobre o que convencionou-se chamar de “questão do negro”, é recorrentemente mobilizado a partir de duas tradições de pensamento: a Sociologia das Relações Raciais e a Antropologia das Populações Afro-Brasileira. Não poucas vezes, essas distintas tradições do pensamento social brasileiro sustentaram posições, avaliações e perspectiva fundamentalmente dissonantes acerca do lugar dos povos, tradições e culturas de origem africana na sociedade brasileira. Possivelmente, no período recente (desde 2003, com a promulgação da Lei. 10.639), o episódio que mais explicitou tais divergência foi o debate em torno das Ações Afirmativas (cotas raciais) para negros na universidade públicas.
A grosso modo, enquanto o legado sociológica compreendia que a reserva de vagas para estudantes negros nas universidade brasileiras como uma espécie de pré-condição para, se não a superação, a mitigação da discriminação racial. A tradição antropológica, por sua vez, ponderava que tais medidas viriam a constituir-se como um ataque grave “a maneira tradicional brasileira” de lidar com as diferenças humanas. Temia-se, inclusive, que a adoção de tais políticas públicas viriam a acirrar ou instigar conflitos raciais. Após vinte ano de Ações Afirmativas, com presença estudantes negros no interior das instituições e dos sistema de ensino superior brasileiro criou-se uma renovada arena de disputa para a expressão de novos valores que traziam consigo. Não é menos verdade, entretanto, que viemos observar a emergência ações reativas e a criação de novos ódios não pela imposição cruel de categorias raciais estáveis, mas por uma inabilidade de mantê-las.
Como explicar avaliações tão dissonantes? Como compreender tanta polêmica e emoção nos betes acadêmicos, no mundo da mídia, no movimento negro? É evidente que por traz dessa cacofonia existem orientações divergentes de ordem teórica/ideológica ligadas a diferentes ideias de sociedade, igualdade, desigualdade e, me parece crucial, Estado-Nação. E há também divergências fundamentais de conceitos-chave - como raça, identidade, cultura, “negro” e “branco” - que raramente eram explicitados pelos debatedores, especialmente os acadêmicos.
Ante a essas diferenças, quero argumentar em favor de uma reflexão contraintuitiva. Aparentemente irredutíveis uma a outra, tais tradições de pensamento, gozam de uma matriz epistemológica colonial/moderna. Epistemes não apenas fornecem a "ordem das coisas" subjacente, mas também a ordem do conhecimento (ciências, disciplinas, discursos) através da qual conhecemos e interpretamos objetos. É tarefa dos estudiosos preservar a episteme e sua ordem de conhecimento usando-a, escrevendo a partir dela. Nesse papel, os estudiosos se tornam gramáticos da ordem do conhecimento. Isto dito, o objetivo dessa artigo é, justamente, tornar inteligível essa espécie de gramática epistemológica. A partir de uma posição genealógica, recuperando as condições de emergência do negro como objeto de conhecimento, abordando o “lugar” a ele atribuído no interior dessas duas tradições de pensamento.
Ao fim, espero sinalizar que, enclausurado, não há escapatória. De uma lado a outro, entre as duas tradições de pensamento — em que se saliente as intenções emancipatórias da sociologia das relações raciais —, aqueles sujeitos e grupos sublinhados pela categoria “Negro” são compelidos, disciplinarmente, a ocupar um lugar e um dever-ser. São esses, não casuais, processos de fixações e fechamentos que encontram no sujeito centrado, seja antropológico ou sociológico, seu fundamento em comum, a marca de como a racialização tem, exitosamente, funcionado no plano epistemológico. Sobre cada um desses marcos e cada qual a seu modo (isto é, sob o mesmo regime e por meio de relações de representação diferentes), raça, como um significante deslizante, tem produzido uma cadeia de equivalências que outorgam fixar, gramaticalmente, o que é ser Negro para o pensamento social brasileiro.
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Maro Lara Martins
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