Nos últimos anos, a constitucionalização de direitos indígenas e da multiculturalidade e plurinacionalidade de países latino-americanos tem sido bastante discutida à luz das Constituições de Bolívia (2009) e Equador (2008). Entretanto, não foram essas as duas primeiras cartas magnas ligadas ao chamado nuevo constitucionalismo latino-americano a expandirem os direitos indígenas na América Latina. Também foram os casos, datados de fins do século XX, das Constituições de Brasil e Colômbia.
Tanto a Assembleia Constituinte brasileira de 1987-1988 como a colombiana de 1991 foram as primeiras constituintes de seus países a contar com a mobilização efetiva e organizada de indígenas em âmbito nacional. No Brasil, nomes como Ailton Krenak participaram de grupos de pressão junto à Assembleia e projetaram suas vozes no debate público. No caso colombiano, de forma inédita, indígenas participaram como constituintes da Assembleia. Foram eles Francisco Rojas Birry, Lorenzo Muelas Hurtado, Alfonso Peña Chepe. O último era ex-integrante de uma guerrilha formada por indígenas que, em acordo de paz com o Estado colombiano, se desmobilizou mediante o direito a ter voz (mas não voto) na Constituinte. Rojas Birry e Muelas Hurtado, por seu turno, eram, respectivamente, lideranças dos povos emberá e misak.
Analisaremos os discursos que essas lideranças produziram no contexto das duas Constituintes, procurando compreender as visões que exprimiram sobre o direito e a história de seus países e de que forma se apropriaram dos conhecimentos jurídicos e historiográficos como uma estratégia política. Esses sujeitos indígenas devem ser compreendidos como intelectuais, considerando a conjugação que fizeram entre esses conhecimentos e os saberes de suas etnias. Ressalta-se que, atuando como integrante da ONIC (Organización Nacional Indígena de Colombia) na época da Constituinte colombiana, Rojas Birry também era graduando em direito.
Em relação à Colômbia, discutiremos como os constituintes indígenas se mostraram tributários do pensamento e da trajetória de Manuel Quintín Lame (1880-1967), indígena Nasa. Liderança política, Quintín Lame foi pioneiro na iniciativa de judicializar direitos das comunidades indígenas, sobretudo no que diz respeito ao respeito aos territórios dessas comunidades, os resguardos, protegidos pela Ley 89 de 1890 (embora essa legislação também atribuísse a indígenas a incapacidade civil e operasse em um paradigma integracionista, que negava o direito das populações indígenas às suas culturas). Quintín Lame já havia organizado protestos e insurreições contra o processo de apropriação, ilícita, das terras indígenas por colonos não indígenas. Apesar de não ter formação universitária, Quintín Lame era conhecedor do Direito colombiano (Constituição de 1886, Código Civil de 1887 e história da legislação indígena desde o período colonial) e leitor de obras jurídicas. Ele também elaborou um pensamento jusfilosófico próprio, tendo produzido livros como Los pensamientos del indio que se educó en las selvas colombianas e En defensa de mi raza. A obra quintiniana (ou lamista), além de expressar uma visão sincrética, mesclando elementos da teologia católica e da cosmologia Nasa, encampa um pluralismo jurídico. Defende-se a convivência entre o ordenamento jurídico nacional e os Direitos Próprios das comunidades indígenas, calcadas em suas autonomias e suas identidades.
Quanto ao caso brasileiro, destacaremos a relevância da atuação de Ailton Krenak na Constituinte para a sua trajetória intelectual. Então coordenador da União das Nações Indígenas (UNI), Krenak se consolidaria, nos anos após a Constituinte, como um dos principais intelectuais públicos dedicados às questões relacionadas às populações indígenas, escrevendo artigos e concedendo diversas entrevistas para a imprensa ao longo da década de 1990. A mobilização em relação à Constituinte parece ter sido crucial nesse itinerário.
Krenak proferiu um célebre discurso no plenário da Assembleia no dia 4 de setembro de 1987, em que, pintando o rosto de jenipapo em sinal de luto, denunciou a ameaça de retrocesso nos direitos indígenas reivindicados. O episódio estabelece paralelo com o pronunciamento de 19 de fevereiro de 1991 de Muelas na Constituinte colombiana. Muelas fez parte de seu discurso em misak como recurso retórico para demonstrar a diversidade cultural ínsita à Colômbia e a importância de valorizá-la e a proteger. Ambos os discursos se relacionam com o relevo da oralidade para as culturas e as intelectualidades indígenas. Os dois discursos também revelam como a expressão da etnicidade de Muelas e Krenak contribuiu para fortalecer discursivamente suas reivindicações.
Também trataremos das redes de sociabilidade que lideranças indígenas dos dois países articularam com intelectuais não-indígenas no contexto das duas Assembleias. Em ambos os países, indígenas estabeleceram importantes parcerias com antropólogos e juristas nos contextos das Constituintes.
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Maro Lara Martins
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