Um fenômeno bastante estudado quando levamos em conta o funcionamento das instituições democráticas contemporâneas no Brasil envolve a constituição de padrões de relacionamento entre Executivo e Legislativo. Neste sentido, foi elaborado o conceito de presidencialismo de coalizão (ABRANCHES, 2018), que já alcançou uma relevância significativa na literatura especializada. Em que pesem as variações interpretativas, durante muito tempo, ele serviu para que a comunidade de especialistas abordassem àquela realidade com o fito de demonstrar que havia uma lógica de funcionamento e de estabilização. É comum que se pense o processo de transação entre governantes e legisladores no Brasil como pautado por acordos espúrios, por “cooptação”, compra de votos, realizado caso a caso. Isto tem a ver, entre outras coisas, com a existência de um sistema multipartidário altamente fracionado e que costuma ser visto como contando com baixa coesão dos partidos políticos. Já as pesquisas sobre o assunto, usando o instrumental citado, caminham na direção contrária, buscando demonstrar maior solidez das bancadas partidárias e constância dos acordos que implicam a negociação de cargos e verbas em troca do controle da agenda do Legislativo pelo Executivo. O que resulta é interpretado como uma coalizão de governo, que apresenta um dia a dia de gerenciamento das matérias no qual jamais estão eliminados o conflito, as renúncias, as desistências, os atrasos, as alterações de conteúdo. Ou seja, o funcionamento das coalizões possui um custo, que varia com o tempo. Elas podem existir no plano federal, no estadual e no municipal. O que a literatura especializada veio fazendo ao longo do tempo, então, foi produzir análises que buscaram introduzir mais lógica e estabilidade ao funcionamento do fenômeno, o que resulta em uma visão mais positiva da democracia no país.
Nos últimos anos, contudo, alguns fatores levaram ao entendimento de que custos e ineficiências teriam aumentado em demasia, de forma que o gerenciamento das coalizões no plano federal teria se tornado muito problemático, resultando no impeachment de Dilma Roussef, no avanço do Congresso Nacional sobre as emendas parlamentares e a produção legal, chegando ao limite no governo Bolsonaro, quando o presidente entregou o controle da coalizão que formou tardiamente ao que se convencionou chamar de “Centrão”. Este grupo, por sua vez, tomou as rédeas da execução das emendas parlamentares, com destaque ao “orçamento secreto”. A posterior eleição de Lula e a continuidade dos líderes do Centrão nas presidências das Mesas Diretoras do Congresso criou elementos para manter uma leitura negativa sobre o sistema como um todo.
Este trabalho traz resultados parciais de uma pesquisa sobre o primeiro mandato de Paulo Hartung como governador do Espírito Santo (2003-2006). Naquele momento, foi desmontado um modelo de funcionamento do presidencialismo de coalizão que se baseava no “Partido da Mesa Diretora (PMD)”. Este conceito foi elaborado por um dos autores deste trabalho em sua tese de doutorado (PEREIRA, 2014). O PMD consta de um grupo informal de parlamentares que se autonomiza com relação ao Executivo, assume o controle dos principais cargos do Legislativo, e, desta forma, dirige o trâmite das matérias. O Executivo deixa de negociar com lideranças partidárias para se acertar com o PMD. Este, em troca, acessa recursos do Executivo, assim como meios próprios ao Parlamento. Tudo isto serve ao propósito de atender à demanda dos legisladores por cargos e verbas, usados para manter o apoio das bases eleitorais. O que aconteceu no período citado nesta pesquisa foi um rearranjo do modelo, com o processo retornando ao controle do Executivo.
Da segunda metade do mandato de Vitor Buaiz (1997-98) até o fim do mandato de José Ignácio Ferreira (2002), José Carlos Gratz assumiu a presidência da Assembleia Legislativa. O modo de funcionamento da coalizão se deu de acordo com a lógica do PMD. No início do mandato de Hartung (2003), este grupo conseguiu eleger o novo presidente da Casa, mas o pleito foi anulado na Justiça. Cláudio Vereza (PT) chegou à direção da Mesa Diretora. Durante seu mandato (2003-2004), eliminou uma das fontes principais de poder do PMD, que era o uso de recursos internos ao Legislativo para distribuir verbas aos pares. Já entre 2005-2006, a Casa foi comandada por César Colnago (PSDB). Ao longo do período, Hartung fez uso estratégico de acusações de corrupção contra membros do antigo PMD como forma de controle sobre o plenário. Contudo, o novo desenho gestou insatisfações entre os legisladores, de forma que pressões foram feitas na fase de Colnago para o reposicionamento do grupo frente aos recursos, com níveis razoáveis de sucesso. Este processo pode ser elucidativo para aprofundar a discussão sobre formas de autonomização do poder interno ao Legislativo, como o que ocorre no caso do Centrão na atualidade no Congresso. E para uma avaliação do conceito de presidencialismo de coalizão.
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Maro Lara Martins
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