Este trabalho sugere que a sociedade brasileira, identificada como uma sociedade de classes convive com situações e características de uma sociedade estamental. Na identificação da origem dos vestígios da sociedade estamental brasileira subsidia esta reflexão o pensamento de autores como Caio Prado Jr., Gilberto Freyre, Celso Furtado, Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro, Florestan Fernandes e Jessé de Souza. Antes, porém, é importante um breve registro sobre as categorias classe e estamento. Na teoria sociológica o conceito “classe social” é próprio da literatura marxiana e o conceito “estamento” da literatura weberiana. Em Marx, classe social configura um embate que se realiza entre forças sociais opostas, entre aqueles que possuem a força de trabalho e os que comandam essa força de trabalho. O que é próprio nessa tensão é a luta dos proletários pela ampliação dos seus direitos. O conceito de estamento, por sua vez, tomando por referência Weber, não inclui necessariamente a luta por direitos, já que os que se encontram em determinada fração social estão limitados a essa condição e apartados da outra fração.
Retomamos agora a caracterização da sociedade brasileira em sua porção estamental partir de alguns interpretes do Brasil. Em Caio Prado Junior, o rasgo estamental brasileiro tem uma origem: o Brasil colônia e o seu regime escravocrata que perdurou por quase quatro séculos. O DNA que compõe e recompõe a sociedade brasileira é a do seu passado escravocrata, da grande propriedade, da monocultura e da superexploração do trabalho. Caio Prado revela que esse sistema produtivo da Colônia originou um país dual, de um lado um “setor orgânico” voltado para fora e, de outro, um “setor inorgânico” vinculado e subordinado ao “setor orgânico” como apêndice do processo produtivo. Isso gerou a ausência de integração entre produção e consumo e resultou na inexistência da formação de uma sociedade. Algo similar afirma Celso Furtado quando destaca que na economia escravista de agricultura tropical se verifica alta concentração de renda, baixa circulação monetária, carência de bases técnicas e baixa produtividade do trabalho. Furtado caracteriza o Brasil como subdesenvolvido por ter se transformado em fornecedor de matérias primas a partir de uma mão de obra explorada. O subdesenvolvimento estabelece um centro e uma periferia e essa mesma dinâmica do sistema internacional se reproduz internamente na assimetria entre os que tudo têm e os que nada têm. Sérgio Buarque de Holanda, por sua vez, nos fala da formação de um país que se orienta e se organiza a partir dos interesses privados e não públicos. O interesse privado configura aqui um grupo social – estamento – que não abre mão da manutenção dos seus interesses e privilégios. A família assume o lugar do Estado, o familismo se sobrepõe ao espírito republicano e a dinâmica das relações de poder e dos centros decisórios é caracterizada pelo viés patrimonialista. O patrimonialismo é o tema central da obra de Raymundo Faoro que tomando “emprestado” categorias chaves do conceito estamento em Weber destaca que no Brasil se desenvolveu um patrimonialismo estamental através de um estamento burocrático que bloqueou a formação de uma sociedade fundada nos preceitos básicos do liberalismo, ou seja, uma sociedade de direitos. Os interesses das oligarquias se estendem ao aparato burocrático e profissional do Estado sem se conectar a um projeto de nação. A ideia da formação do país que se constitui num processo de apartação social é reafirmada por Florestan Fernandes. O autor afirma que no Brasil sequer chegamos a uma Revolução Democrática (inclusão social via acesso aos direitos básicos) e Nacional (definição de um projeto econômico livre da subordinação do capital de fora). No Brasil, assistiu-se, segundo Florestan, a um processo de recomposição das estruturas de poder entre a oligarquia e a burguesia emergente, através da conciliação dos interesses dessas duas classes. Tal situação permitiu a associação entre o modelo burguês de dominação e os procedimentos autocráticos e conservadores da oligarquia, o que transformou o Estado brasileiro numa instituição avessa à efetiva participação e inclusão da população em seus destinos. Por fim, em Jessé de Souza a caracterização da permanência dos traços de uma sociedade estamental no Brasil é ainda mais evidente. Segundo ele, o grande problema do país não é a corrupção, mas a desigualdade social. Porém, diz ele, “fomos convencidos” de que a desgraça em que nos encontramos e a origem de todos os nossos problemas é a corrupção. Nesta tese, os males do Brasil se encontram no Estado corrupto que vampiriza, suga a sociedade e é inepto, ineficaz, e apartado da sociedade. Em desacordo com o conceito do patrimonialismo, Souza insiste na tese de que nosso principal problema – a desigualdade – é originário da escravidão e permanece até hoje entre nós, assumindo a configuração de um grupo social estamental denominado pelo autor de ralé.
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Maro Lara Martins
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