O presente trabalho visa explorar as interpretações performativas de cientistas políticos de inscrições acadêmicas norte-americanas a respeito da situação democrática ocidental vigente e as ressonâncias das referidas interpretações no pensamento social brasileiro. Diante de novas configurações políticas, advindas de relevantes vitórias eleitorais de políticos tidos como autoritários e extremistas, novos porta-vozes no campo da Ciência Política se destacaram, a fim de definir, a partir de suas inscrições disciplinares, as causas políticas para a ascensão desses líderes ao redor do mundo. Nesse contexto, a formalização de conceitos de cunho operacional e a proliferação de autores e intérpretes políticos, autodenominados “defensores da democracia”, delineou uma configuração propensa à descrição do tema, num ambiente de concorrências entre diferentes definições da situação democrática nos EUA e no contexto ocidental.
A profusão desses novos conceitos e interpretações em Ciência Política evidenciou a questão da “crise da democracia liberal” sob um viés muito específico, com descrição da realidade social e um programa de percepção tipicamente norte-americano, isto é, com a utilização de abordagens internalistas, excessivo enfoque na atuação das instituições democráticas e com obstáculos epistemológicos graves, mas que encontra ampla difusão no campo acadêmico ocidental, irradiando interpretações performativas de elites intelectuais norte-americanas por diversos países, inclusive o Brasil. Nesse sentido, a partir do modelo analítico disposicional de Pierre Bourdieu, o presente trabalho busca evidenciar a problemática da importação de esquemas e representações estrangeiros na formação do pensamento social brasileiro a respeito da questão democrática atual.
Para tanto, o presente artigo evidencia o papel dos intelectuais na formulação, propagação e recepção de sistemas de percepção e representação em Ciência Política, a partir das lições de Bourdieu (1981), Reis e Grill (2013, 2020). Nessa perspectiva, seleciona os autores da Ciência Política norte-americana de maior relevância editorial e acadêmica no Brasil (a saber, Phillip Bobbit, Larry Diamond, Steven Levitsky, Daniel Ziblatt, Yascha Mounk), identifica seus respectivos enunciados performativos de Ciência Política sobre o sistema democrático vigente e analisa as inscrições acadêmicas e profissionais dos referidos autores. Parte-se de uma análise bibliográfica dos perfis públicos dos autores nas universidades, institutos e associações a que estão vinculados, bem como dos seus principais livros traduzidos e publicados no Brasil.
Em seguida, passa-se a identificar o principal argumento presentes nos enunciados dos autores selecionados no contexto de “defesa democrática” e sua relação com a recepção que a “Teoria de Elites” teve nos Estados Unidos, a partir do estudo de Grynszpan (2016). Em sequência, o artigo explora a recepção dos autores indicados no Brasil, com a indicação da incidência das citações desses em grupos de trabalho, seminários temáticos e simpósios de pesquisa relacionados nos anais dos últimos 25 Encontros Anuais da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais – ANPOCS, a partir da busca no site oficial do ente (https://www.anpocs.com/index.php/encontros/papers). Com a respectiva base de dados, demonstra a alta incidência de referenciações dos autores selecionados em inúmeros trabalhos e pesquisas acadêmicas no Brasil ao longo dos últimos anos. A partir dessa análise qualitativa, destaca a recepção desse sistema de representação da Ciência Política estadunidense no Brasil, a função de intermediação política realizada por intelectuais mobilizados, conforme Reis (2013), e sinaliza as condições da valorização do campo intelectual e seus enunciados no mercado de bens simbólicos, de acordo com Sapiro (2012). Além disso, enfatiza o “efeito teórico” que tais enunciados performativos, nos termos bourdieusianos, possuem frente a questão política deslocada do contexto norte-americano para o contexto brasileiro, numa expressão clara do “imperialismo cultural”, como descrito por Bourdieu e Wacquant (2002), e da confusão entre as posições do acadêmico e do político, conforme esclarece Lacroix (1992). De fato, a questão da “crise da democracia liberal”, tão destacada pelos autores selecionados, pode assumir contornos arbitrários, quando não neutralizada politicamente ou quando é irrefletidamente importada (LACROIX, 1992).
Por fim, conclui pelo forte grau de ressonância dessas interpretações perfomativas estrangeiras no Brasil, bem como indica a baixa institucionalização do campo teórico da Ciência Política brasileira e a fraca autonomia intelectual das Ciências Sociais na América Latina (REIS, 2013), como possíveis causas para a forte adesão de tais enunciados, de origem estadunidense, na formação do pensamento social brasileiro.
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Maro Lara Martins
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