No campo intelectual, o falecimento de criadores de tradições origina disputas em torno dos sentidos de memória e herança. A partir da análise dos itinerários biográficos e intelectuais de Oneyda Alvarenga (1911-1984) e Gilda de Mello e Souza (1919-2005), nossa proposta é compreender como as concepções de Mário de Andrade (1893-1945) sobre cultura e estética, especialmente a respeito das manifestações culturais brasileiras, foram disseminadas em coleções de discos e livros organizadas pelas duas autoras. Herdeiras e guardiãs da memória, Oneyda e Gilda ajudaram a tracejar as fronteiras que definiram os critérios para o reconhecimento da obra de Mário de Andrade no conjunto de autores clássicos do pensamento brasileiro, particularmente, nas áreas de música e literatura. Se por um viés, seus esforços se concentraram na manutenção do legado do professor de Oneyda e do primo de Gilda, pode-se também atribuir o interesse pela construção da memória de Mário a um cálculo das duas autoras, no sentido de qualificar suas respectivas posições no campo intelectual do país.
Na trama de relações entre Mário-Oneyda e Mário-Gilda, apreciam-se dois momentos distintos, ocorridos antes e depois da morte do escritor modernista. No primeiro momento, na condição de discípulas, consideramos, portanto, o período em que Oneyda foi aluna de Mário no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo (entre 1931 e 1934) e que Gilda morou com o primo na casa da Rua Lopes Chaves (entre 1931 e 1938). A partir da análise de relatos memorialísticos e da epistolografia, analisaremos como as legatárias de Mário construíram relações afetivas e profissionais que expressavam as diferenças de geração, de gênero e de circulação das ideias entre interior e um centro cultural, bem como ambas se empenharam em construir em relação a ele uma autonomia relativa e, vale acentuar, um “renome próprio” (Corrêa, 2003; Pontes, 2010).
Em um segundo momento, após o falecimento de Mário, enquanto herdeiras intelectuais e críticas já consolidadas, ao pensarem a sociedade a partir de suas expressões culturais, adotando como objeto e problema de suas respectivas reflexões a música e o folclore, no que concerne à atividade de Oneyda; e a estética e a literatura, no caso de Gilda, propomos uma reflexão sobre como ambas retomaram algumas problemáticas presentes nos textos de Mário de Andrade. Para tanto, analisaremos os trabalhos publicados por elas que, segundo a nossa hipótese, tornaram possível a “atualização”, ou adaptação em contextos para além do original, da produção do intelectual paulistano.
Epígono do movimento modernista, Mário de Andrade, em seu vasto conjunto de correspondências, construiu e fortaleceu redes de intelectuais, incluindo em seus debates interlocutoras como Gilda e Oneyda. Essas legatárias de uma tradição intelectual, em suas respectivas atividades, fomentaram a constituição de um estatuto de clássico a um vasto conjunto de publicações de Mário, ressaltando alguns “momentos decisivos” como a Semana de Arte Moderna de 1922, a direção do Departamento de Cultura entre 1935 e 1938, o ensino na Universidade do Distrito Federal e no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Ou seja, Gilda e Oneyda contribuíram para a formação de linhas interpretativas a respeito do papel de Mário no movimento modernista e organizaram algumas das ideias do autor em torno de suas propostas estéticas. Com seus esforços de sistematização das correspondências ou das proposições teóricas, as herdeiras rotinizaram o estilo vanguardista do modernismo em São Paulo.
Desse modo, em linhas gerais, nos perguntamos sobre quais foram as condições sociais de produção intelectual dessas duas protagonistas no contexto paulistano de atividade intelectual. A partir das dinâmicas que organizam as disputas pela memória, atravessadas por marcadores como gênero e geração, buscamos entender como a relação entre quem consagra e o autor consagrado implicou em uma seleção de textos e de cartas, ou seja, como o vínculo entre as herdeiras e a obra do autor “fundador” criou um viés para definir as leituras adequadas para a construção de uma tradição intelectual.
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Maro Lara Martins
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