Jessé Souza é hoje um dos intelectuais brasileiros que mais tem se destacado no debate público por conta de suas fortes críticas às ideias dominantes no pensamento social brasileiro. Desde o início dos anos 2000, o autor se propôs a analisar aquilo que ele intitula de “sociologia da inautenticidade”, ou seja, a forma pré-moderna de sociedade que os intelectuais responsáveis por construir as narrativas dominantes sobre a identidade nacional atribuíram ao Brasil.
Segundo Souza os intérpretes do Brasil que construíram e consolidaram a sociologia da inautenticidade no senso comum foram, principalmente, Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Roberto DaMatta. Ambos partiram de pressupostos inarticulados sobre a formação da sociedade brasileira para edificarem as teses do homem cordial, do patrimonialismo e do jeitinho brasileiro, respectivamente. Souza confronta os argumentos dos autores por acreditar que eles tenham levado adiante o legado culturalista edificado por Gilberto Freyre, intelectual ambíguo que condensa ideias conservadoras e progressistas em suas obras de juventude, mas visto pelo nosso autor como o mais progressista de sua geração. Freyre seria o responsável por forjar o paradigma nas ciências sociais nacional: o da herança ibérica como marca singular da sociedade brasileira. Na perspectiva freyriana, o Brasil seria então fruto da continuidade com os elementos culturais de Portugal, tendo em vista que o português se adaptou facilmente aos trópicos graças à sua plasticidade e ausência de orgulho de raça, proporcionando-lhe edificar uma particular democracia racial em solo brasileiro. O que Freyre buscou foi exaltar as virtudes afetivas compensatórias da sociedade brasileira como uma contrapartida ao cálculo racional e domínio das emoções do protestante asceta que logrou êxito na construção da democracia liberal na sociedade norte-americana. Freyre, portanto, idealizou a formação da sociedade brasileira por meio de um mito de origem, segundo Souza.
Neste sentido, as ideias produzidas por Buarque, Faoro e DaMatta são, para Souza, pseudocientíficas, já que partiram de um mito nunca questionado e acabaram se tornando discursos hegemônicos tanto na academia, quanto nos debates políticos e no senso comum. Segundo o nosso autor, as teses do homem cordial, do patrimonialismo e do jeitinho brasileiro, que conectam o Brasil moderno ao estado medieval e pré-moderno de Portugal, ganharam a mente e o coração dos brasileiros, produzindo por consequência uma cultura política conservadora que atende a interesses específicos de uma ínfima elite econômica.
Em seu livro A Elite do Atraso (2017), Souza sustenta que essa elite se apropria da narrativa construída pela intelectualidade para disseminar na opinião pública a noção da corrupção do Estado como uma patologia nacional, cooptando sobretudo a classe média (por meio de uma imprensa venal controlada por essa mesma elite) para fins de legitimação do combate à corrupção. Dessa forma, a tese do Estado patrimonialista passa a ser utilizada como mote central para a moralização da política e o fardo recai sempre sobre o colo de governantes não palatáveis aos interesses dessa mesma elite, que mobiliza setores da classe média para atentar contra a soberania nacional em favor de um projeto econômico radicalmente liberal, ao qual o autor intitula de liberalismo conservador. Exemplo disso são os casos emblemáticos da história política brasileira recente que Souza se propõe a analisar na obra: a Operação Lava Jato (2014-2021), o golpe midiático-parlamentar/impeachment contra a ex-presidenta Dilma Rousseff (2016), a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2018), e a eleição de Jair Messias Bolsonaro à presidência da República (2018).
Essa sequência de atentados da elite contra a democracia e a proliferação do ódio ao sistema político, sobretudo à esquerda e ao PT, são entendidas por Souza como o ponto de irrupção da extrema-direita brasileira. A aposta numa “aventura golpista”, que culminou com a eleição do presidente Jair Messias Bolsonaro em 2018, acabou engendrando uma radicalização política perigosa que se alimenta principalmente pela aversão à esquerda. O antipetismo, portanto, transformou-se na expressão moderna do ódio secular devotado pelas elites e por frações conservadoras da classe média aos pobres e miseráveis que compõem a ralé brasileira.
Diante da discussão apresentada até aqui, busca-se destacar o importante papel desempenhado pelo autor em suas obras ao suscitar um debate acadêmico que pretende romper com as interpretações conservadoras dominantes sobre a sociedade brasileira que permanecem presentes e vívidas na opinião pública e no senso comum e ver seus desdobramentos na política, tanto com o advento da extrema- direita, quanto com a busca pela reconstrução da esquerda nacional.
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