A petição pública dos intelectuais brasileiros para a Quarta República Francesa: usos do passado em jogo (1946-1960)

  • Autor
  • Caroline Aparecida Guebert
  • Resumo
  • Este trabalho é um recorte menor de uma tese de doutorado em história, centrada na trajetória e na memória da poeta e salonista franco-uruguaia Béatrix Reynal (1892-1990) no Brasil, cuja produção e inserção integra um lastro francófono e francófilo mais amplo de circulação de pessoas, ideias e bens culturais. A partir de um enfoque transnacional (não linear) e em diálogo com a proposta do GT 13, busca-se problematizar como a categoria “intelectuais brasileiros” foi mobilizada no debate público do pós-Segunda Guerra Mundial e do pós Estado-Novo, enquanto se reclamava por justiça e contra o esquecimento das ações engajadas de Béatrix Reynal e seu grupo de interlocutores, que ansiavam em se apresentar como o locus da “resistência francesa no Brasil”, em diversos sentidos. 

    A prática de consagração mútua – escrever sobre os pares – fazia parte do jogo intelectual, mas, neste caso, a questão vai além do corriqueiro. Existiu uma reinvindicação coletiva e duradoura, que surgiu em 1946, ainda na esteira do I Congresso Nacional de Escritores (1945) e, mais especificamente, contanto com a assinatura dos 170 nomes recrutados dentre as organizadoras, os patrocinadores e o júri do Concurso Infantil de arte intitulado “Como vê você Paris Libertada?” (1945), organizado por Béatrix Reynal naquele ano. Inicialmente, a pauta era o descaso da Embaixada Francesa com os desenhos brasileiros que deveriam ser expostos na Europa, bem como a não realização da prometida viagem da sua idealizadora. Ao longo do tempo, esta petição se transformou, incorporando questões candentes do pensamento social do período, e passou a discutir noções como: verdade, testemunho, relações culturais e imperialismo, sendo entregue, por exemplo, aos presidentes francês e brasileiro, respectivamente René Coty (em 1958) e JK (em 1959), contando com mais de 400 assinaturas e com o engajamento também em outras mídias, de alguns dos mais conhecidos escritores e artistas brasileiros da época. Tais reivindicações acabaram por reunir e difundir memórias grupais (acionadas na linguagem da época como “provas”), bem como desembocaram no mote de formação do próprio arquivo pessoal de Béatrix Reynal, hoje sob a guarda da Biblioteca Nacional (BN).

    As diferentes versões da referida petição, articulam-se com textos literários produzidos por certos signatários - Carlos Drummond de Andrade, Rachel de Queiroz, Rubem Braga, Alvaro Moreira, Henrique Pongetti, José Geraldo Vieira, entre outros – autores/as que a historiografia e o pensamento social brasileiros costumam situar como pertencentes à segunda geração modernista atuante no Rio de Janeiro. Tendo isso em vista, destaca-se os usos do passado mobilizados nesse conjunto de documentos textuais, sobretudo a partir: a) da literatura romântica provençal do fim do século XIX (Mistral, Daudet, entre outros), que se interligam à identidade intelectual da própria Béatrix Reynal; b) da atualização da forma discursiva da carta de Emile Zola (“Eu acuso”), empregada no âmbito do caso Dreyfus; c) dos símbolos oriundos da antiga e popular fábula da Formiga e da Cigarra – representando Béatrix como “a cigarra da França”.

    Dialoga-se aqui com o historiador Henry Rousso (1991), a respeito da temporalidade histórica da “Síndrome de Vichy”, em sua fase de luto e repressão (meados dos anos 1940 até à década de 1960), quando os franceses reprimiram publicamente as memórias da guerra civil, iludindo os aspetos mais negativos do Regime de Vichy (1940-1945), como o outro lado da moeda da memória predominante da guerra, isto é, a da identificação e projeção da “resistência francesa” com a nação, características da visão gaullista sobre o passado recente. Nesse interim, a expressão “Béatrix, nós cremos em ti” (trocadilho com o nome do poema e do programa de rádio “Franceses nós cremos em vós”, de autoria dela) circulou entre as escritas dos intelectuais brasileiros/as e os discursos solenes das autoridades francesas, tais como Henrique Martin, representante da Radiofusão francesa que veio ao país em 1952. Existiu uma atmosfera de dívida por parte da Quarta República Francesa para com a intelectualidade brasileira, atravessando a agenda de políticas culturais de “reconstrução da França”.

    Os testemunhos que se levantaram, enfocaram três pontos principais: 1) que a sua obra foi fundamental no período da neutralidade (do Brasil) na guerra e da crise da França; 2) que os mediadores da Embaixada Francesa, nos anos 1940, cometeram erros e injustiças; 3) que os que assinavam eram francófilos e se viam na condição (e no risco) de constituírem a última geração francófila por excelência no Brasil. Assim, para “os intelectuais brasileiros”, Béatrix Reynal se tornou uma figura (e uma metáfora), numa teia que só pode ser compreendida perguntando para quem e do que escreviam quando tocavam no assunto. Tal petição ainda não foi estudada por outras teses e enquanto fonte tem potencial para abrir novas pesquisas tanto no campo de PSB quanto da História.

     

  • Palavras-chave
  • Intelectuais Brasileiros; Usos do Passado; Béatrix Reynal; Quarta República Francesa; Geração
  • Área Temática
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