Inclusão educacional das pessoas com deficiência à luz dos discursos normativos: o que se espera do professor? Uma análise crítica sob a perspectiva de Adorno e Foucault

  • Autor
  • Isabela Rodrigues Costa
  • Resumo
  •  

    A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em seu artigo 4º, inciso III, define como público-alvo do Atendimento Educacional Especializado (AEE) os estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação. Essa definição, contudo, é resultado de um processo histórico dinâmico, que se transformou ao longo dos anos (BRASIL, 1996, art. 4º, III).

    A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, marco legal que consolidou o direito à educação para todos, a educação especial e inclusiva ganhou destaque na agenda pública brasileira. O país tornou-se signatário de convenções e tratados internacionais e publicou uma série de normativas sobre o tema.

    Uma análise preliminar desse conjunto normativo revela a presença constante da figura do professor, evidenciando sua importância no processo de inclusão de alunos com deficiência.

    Em 2023, o Brasil registrou 1,8 milhão de matrículas na educação especial, um aumento de 41,6% em relação a 2019. No entanto, dos 2.354.194 professores da educação básica, apenas 91,7% possuem nível superior completo ou curso de ensino médio normal/magistério. Além disso, somente 47,7% dos professores têm pós-graduação e 41,3% participam de formação continuada (INEP, 2024, p. 50-66).

    Essa necessidade de formação qualificada torna-se ainda mais evidente quando confrontamos a realidade com as metas estabelecidas pelo Plano Nacional de Educação (PNE) de 2014, que exigem formação superior específica para todos os professores da educação básica e pós-graduação para 50% deles. Como observado, esses objetivos ainda não foram alcançados.

    A discrepância entre as metas e a realidade suscita questionamentos sobre o papel do professor na inclusão de alunos com deficiência. Diante de sua relevância, é fundamental compreender como esse papel é definido e quais condições históricas permitiram essa definição. Tal entendimento é essencial para um diagnóstico crítico da situação atual e dos mecanismos que moldam a atuação do professor nesse contexto.

    Esta pesquisa investiga o papel do professor na inclusão de pessoas com deficiência, buscando compreender a transformação dos discursos normativos ao longo do tempo. Partindo da premissa de que a inclusão é um campo de disputas e contradições, o estudo analisa as condições de emergência que possibilitaram o cenário normativo atual. O período analisado será de 1988 a 2022, em razão da promulgação da Constituição Federal de 1988, marco legal que consolidou o direito à educação para todos, e da publicação do último relatório referente ao Plano Nacional de Educação (2014-2024) em 2022, documento que avalia o cumprimento das metas e estratégias para a educação inclusiva no Brasil.

    A análise adota uma abordagem discursiva, explorando as interseccionalidades entre as obras de Theodor Adorno e Michel Foucault, que contribuíram para a crítica da racionalidade instrumental e a desconstrução de verdades instituídas.

    Adorno, com sua crítica à indústria cultural e à padronização do ensino, oferece ferramentas para analisar o impacto da lógica da produção em massa na inclusão educacional. Questiona-se se a racionalidade instrumental, com sua ênfase na mensuração de resultados, leva à homogeneização do ensino e à desconsideração das singularidades dos alunos com deficiência, influenciando a construção do papel do professor na inclusão.

    Foucault, com sua análise das relações de poder e dos discursos que moldam as práticas sociais, oferece ferramentas para compreender a construção das normas e discursos sobre a deficiência, e como estes operam para incluir ou excluir. A genealogia do poder, proposta por Foucault, permite rastrear as origens e transformações dos discursos sobre a deficiência, identificando as condições históricas e sociais que possibilitaram a emergência de determinadas normas e práticas. Busca-se compreender se a ascensão da racionalidade neoliberal e a influência dos discursos sobre a anormalidade influenciam a construção do papel do professor na inclusão.

    A tessitura do papel do professor, tecida por fios discursivos que ora se aproximam, ora se distanciam, revela uma trama complexa, onde a racionalidade instrumental e os mecanismos de poder se entrelaçam. Ao explorarmos as obras de Adorno e Foucault, desvendamos fragmentos desta trama: a lógica da dominação, a semiformação, as contradições sociais e os discursos de poder-saber. Agora, o convite é para que, como um artesão, possamos unir essas peças, construindo uma lente capaz de analisar a complexidade que molda a figura do professor na atualidade.

    Em um primeiro momento, é importante ressaltar que embora a ênfase de Foucault esteja mais voltada para a análise das práticas discursivas e do poder, enquanto Adorno se concentra mais na crítica racionalidade instrumental e na alienação, ambos os autores oferecem contribuições valiosas para a compreensão da relação entre pensamento, conhecimento e ação.

    Adorno, influenciado pela tradição marxista, foca no pensamento como uma faculdade humana que vem sendo alienada e instrumentalizada pela sociedade capitalista. Para este autor, ainda que o pensamento seja uma ferramenta basilar para a crítica, este também pode ser distorcido pela ideologia e pela cultura de massa.

    Por outro lado, Foucault foca no conhecimento como um produto de práticas discursivas e relações de poder. Para o autor, o conhecimento não é uma representação neutra da realidade, mas sim um conjunto de discursos e práticas que definem o que é considerado verdadeiro e falso. Sendo assim, o autor critica a ideia de uma teoria abstrata e universal desvinculada da realidade concreta, já que o conhecimento não é apenas um conjunto de ideias, mas também uma prática que molda a realidade social, revelando como conhecimento é utilizado para disciplinar e controlar os corpos e as mentes.

    Neste sentido, Albino e Vaz destacam outros autores que percebem uma conexão entre as obras dos filósofos, como Honneth, Silvio César Camargo, Charles Taylor e Antônio Maia. Eles apontam que o trabalho de Foucault pode ser visto como uma radicalização e, ao mesmo tempo, uma complementação da teoria crítica, especialmente pelo modelo conflituoso e agonístico das relações sociais e da questão do poder. Além disso, observam que Foucault oferece à Escola de Frankfurt uma explicação sobre a conexão entre a dominação da natureza e do homem, destacando a violência sobre o corpo, a disciplinarização e a manipulação do desejo através de padrões de comportamentos ideais. (ALBINO; VAZ, 2008, p. 5-6)

    Além disso, Hilário aponta que, ao rejeitar o que chama de “chantagem iluminista”, Foucault enfatiza que a Razão iluminista constitui a outra face dos processos de sujeição. Isso o aproxima de Adorno e Horkheimer, que defendem que a reflexão filosófica não pode mais depender da Razão abstrata como garantia de emancipação. Hilário também destaca que ambos compreendem os processos de sujeição como consequência lógica dos discursos emancipatórios: Foucault através do estudo sobre o nascimento das prisões e Adorno e Horkheimer na análise do fascismo. (HILÁRIO, CUNHA, 2012, p. 183)

    Historicamente, podemos perceber que a construção da representação da deficiência foi ancorada em definições científicas e médicas, ilustrando como discurso médico, erigido como detentor da verdade, em razão do seu status científico, influenciou não apenas a forma como a deficiência percebida socialmente, mas também como é retratada nas normativas que orientam as práticas educacionais. Essa hegemonia do discurso médico, ao definir o que é considerado normal e desviante, molda as expectativas em relação ao papel do professor, que se vê impelido a atuar como um agente de normalização.

    Atualmente, apesar do discurso de inclusão prever que a deficiência não está no indivíduo e sim na sociedade, parece se manter a noção de que esses indivíduos são diferentes, conforme se extrai das diversas categorizações e especificidades relacionadas a este público presente nas normativas. Essa tensão revela como o discurso de inclusão, embora prometa a superação da normalização, ainda se encontra permeado por práticas que reforçam a diferença.

    Nesta lógica, a compreensão do corpo na sociedade contemporânea pode ser feita a partir de uma análise que integre as perspectivas de Adorno e Foucault. Adorno, ao expandir a análise de Marx, mostra como a racionalidade instrumental e a cultura de massa subjuga o corpo, moldando desejos e comportamentos e levando a perda da individualidade. Foucault, por sua vez, revela como o corpo é uma superfície de poder, onde se exercem técnicas de disciplina e controle, moldando subjetividades e comportamentos através de discursos e práticas normalizadoras. Juntas, estas perspectivas nos permitem compreender como o corpo é transformado em um objeto de poder, submetida a diferentes formas de controle e exploração, desde a exploração econômica até a alienação cultural e o controle disciplinar. Neste contexto, percebe-se que é em grande maioria, as normativas brasileiras ainda se baseiam em categorizações diagnósticas para definir as necessidades dos alunos com deficiência, além de preverem diversas “adaptações” para conformá-los na lógica vigente. Essa abordagem médica reduz o corpo a um conjunto de sintomas e diagnóstico, ratificando a divisão desses indivíduos como diferentes, anormais.

    Por este prisma, as ideias de Adorno sobre a formação e os mecanismos hegemônicos se complementam com a análise foucaltiana dos discursos normalizadores e da ordem disciplinar, uma vez que ambos os autores identificam como a formação e os discursos normalizadores são usados para disciplinar e controlar os indivíduos. A governamentalidade de Foucault e o mundo administrado de Adorno descrevem como o poder se exerce de forma sutil e difusa, através de mecanismos que moldamos indivíduos desde a sua formação.

    As noções de governamentalidade de Foucault e de mundo administrado de Adorno se conectam na medida em que descrevem a forma sutil e difusa como o poder se exerce na sociedade contemporânea, não através de coerção direta, mas por meio de mecanismos que moldam os indivíduos desde sua formação. Se por um lado a governamentalidade de Foucault destaca como o poder opera através de técnicas de controle e normalização que internalizamos, tornando-nos agentes de nossa própria sujeição, o mundo administrado de Adorno descreve como a racionalidade instrumental e a cultura de massa moldam nossos desejos e comportamentos, levando a conformidade e a alienação.

    Essa forma sutil de poder afeta diretamente a construção do papel do professor, uma vez que está imerso em um sistema que pressiona os indivíduos a se conformarem às normas e expectativas estabelecidas. A racionalização do saber, evidenciada na ênfase crescente em técnicas e padronização, conforme se percebe nas normativas que buscam 'padrões de qualidade' e 'pleno desenvolvimento', afeta diretamente a formação e a atuação do professor. Neste contexto, o professor parece ter sua autonomia reduzida, tornando-se um mero executor de tarefas a serviço da lógica do mercado.

    À luz das considerações já feitas, Adorno e Foucault percebem como a racionalidade neoliberal e a lógica do capital permeiam todos os aspectos da vida social, incluindo a educação. A lógica gerencial capitalista, que transforma o indivíduo em 'empresário de si mesmo', e a padronização nos discursos normalizadores parecem se estender às exigências normativas que constroem o papel do professor. A padronização do ensino, ao priorizar a eficiência e a produtividade, indicam um projeto de homogeneização do conhecimento que busca, através da lógica semiformativa que recebeu e que está obrigado a reproduzir, limitar a capacidade do professor de questionar as normas estabelecidas e de desenvolver práticas pedagógicas inovadoras, perpetuando assim a ordem hegemônica.

    Em uma primeira análise, essas contradições sociais que orbitam a definição do papel do professor – a exigência da crítica em contraste com a formação e atuação padronizadas, a necessidade de atuar como agente de inclusão e, simultaneamente, como agente normalizador – revelam a complexidade desse cenário. indica um reforço do treinamento para a conformidade com a lógica dominante. Essa tendência de dominar o desconhecido, impulsionada pelo medo, relaciona a dialética do esclarecimento proposta por Adorno à conceituação foucaultiana de dispositivo biopolítico de controle e gestão da vida.

    Assim, a análise de discurso aqui proposta se dará a partir das perspectivas foucaltiana e adorniana sobre a educação que, segundo Scarel e Zanolla, embora sejam diferentes, enfatizam a importância de uma educação crítica, que olhe para o passado para situar o presente (SCAREL; ZANOLLA, 2015, p. 649).

     Para Foucault, a educação deve ser um exercício de crítica filosófica, permitindo a análise dos mecanismos de poder através da maquinaria microfísica de produção do saber. Isso conduz à dedução de posicionamentos estratégicos, que não podem ser adquiridos por meio de uma formação que visa apenas a utilidade e a docilidade, nem pela simples aquisição de preceitos e fórmulas. (FOUCAULT, 1987, p.  31)

    Adorno, por sua vez, apesar de divergir do filósofo francês ao se inspirar nas ideias de Marx e Freud em suas análises críticas, contrapõe-se ao processo anticivilizatório, destacando a necessidade de investir em uma educação que possibilite aos indivíduos o exercício da autorreflexão crítica. Ele argumenta que essa forma de educação é essencial para enfrentar as tensões da modernidade e promover uma verdadeira emancipação. (ADORNO, 1995, p. 21)

    Assim sendo, utilizando os apontamentos realizados por Hilário, a condição aporética da crítica que aproxima Foucault da primeira geração da Escola de Frankfurt serve como uma indicação para um exercício de leitura acerca do presente histórico, com o potencial de produzir um diagnóstico. Trata-se, portanto, de reposicionar a aporia, enfatizando a radicalidade crítica destes autores e destacando sua relevância contemporânea. (HILÁRIO, 2012, p. 184-185)

    Conforme se observa, Adorno e Foucault, apesar de suas divergências, ofecanismos de subjetivação contemporâneos. Essas convergências enriquecem a análise crítica da modernidade, fornecendo bases sólidas para compreender os mecanismos de poder e subjetivação na sociedade atual. Com isso, abre-se um caminho promissor para aprofundar a investigação sobre as dinâmicas sociais e políticas envolvidas nas investigações da presente pesquisa.

     

    Sendo assim, através dessa análise, a pesquisa visa elaborar um diagnóstico do presente, mapeando as condições de emergência que possibilitaram o cenário normativo atual e identificando o papel do professor que se pode extrair. Em suma, este estudo reforça a importância de uma análise crítica dos discursos educacionais contemporâneos,. Ao iluminar os discursos e as relações de poder, ele pretende contribuir para uma compreensão mais profunda das dinâmicas que moldam a inclusão de pessoas com deficiência na educação. Espera-se que estas reflexões incentivem práticas pedagógicas mais críticas. Nas palavras de Paulo Freire, “se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda” (FREIRE, 2000, p. 31). erecem ferramentas valiosas para diagnosticar o presente e os m

  • Palavras-chave
  • Pessoas com deficiência. Inclusão. Educação. Professor. Discursos normativos.
  • Área Temática
  • GT11 - Políticas de Ações Afirmativas e o Pensamento Social Brasileiro Contemporâneo
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O 4º Seminário de Pensamento Social Brasileiro: intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, será realizado entre os dias 2 e 6 de junho de 2025, no formato híbrido. A programação presencial será realizada nas dependências do CCHN-Centro de Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito Santo, enquanto a programação virtual será transmitida pelas páginas oficiais do evento no YouTube e pela DoityPlay. Nesta edição contaremos com Conferência de Abertura, Grupos de Trabalho (modalidade virtual) e Conferência de Encerramento. Esperamos retomar o diálogo proposto nas edições anteriores do evento (1º SPSB2º SPSB e 3ºSPSB) que resultaram na publicação de livros oriundos das áreas temáticas presentes anteriormente (Coleção Pensamento Social Brasileiro-Volume 1 Volume 2 Volume 3 Volume 4), publicarmos novos livros oriundos desta edição do evento e que novas conexões possam ser criadas. Com esses sentimentos de alegria e reencontro, lhes desejamos boas-vindas!

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