É sabido que, não obstante os inúmeros esforços recentes, os estudos de perspectiva histórica e social acerca da música brasileira ainda são incipientes (SANDRONI & FERNANDES, 2016; CASTAGNA, 2008). Dos vários obstáculos que retardam o desenvolvimento desta área de pesquisa no país, chama a atenção a ausência de uma compreensão propriamente sociológica das origens e características da nossa música. Assim, a “brasilidade” de determinados fenômenos musicais é pressuposta irrefletidamente, e dela derivam as diversas e contraditórias concepções de “erudito”, “popular”, “tradicional” e “moderno” que ainda abundam na literatura especializada. Cabe justamente a sociologia da música perguntar não só quais são os aspectos singulares da música brasileira, mas principalmente porque e de que maneira esses aspectos a definem como tal.
Buscamos, de maneira esquemática, dar andamento a essas questões a partir da análise musical e sociológica de duas gravações de Águas de Março, canção composta por Antônio Carlos Jobim em 1972. As gravações, uma do próprio compositor (1973) e outra de João Gilberto (também de 1973), contém elementos musicais carregados de sentidos sociais que melhor se revelam quando elas são comparadas. A análise baseou-se na escuta e transcrição das gravações e na leitura das partituras disponíveis e da bibliografia existente. Dela, concluímos que a música articula elementos da tradição musical ocidental a partir do referencial local, e nisto consiste sua brasilidade.
Águas de Março foi composta por Antônio Carlos Jobim em 1972 e lançada em disco por ele e por João Gilberto em 1973. Seu contexto social mais imediato é a ditadura civil-militar instaurada na esteira do golpe que frustrou a modernização industrial democrática gestada na década de 1950. Em texto sobre a canção, Walter Garcia (2017) analisa detidamente a construção poética da letra, que promove certa circularidade. Por sua vez, Arthur Nestrovski (2003) também se refere à sensação de moto-contínuo que a letra sugere para o ouvinte.
Para além do texto, a estrutura harmônica da música também contribui com a sensação de circularidade musical. Apoiados em uma progressão I-I7(V/IV)-IV-IVm, os acordes se destacam devido às inversões e substituições empregadas: Jobim substitui o IV grau maior pelo #IV menor com sétima menor e quinta diminuta e suas inversões, além de eventualmente inverter também os outros acordes da progressão. Portanto, assim como o deslocamento melódico, contribui com a elaboração de uma sensação da circularidade a variabilidade e as escolhas harmônicas do compositor. Escuta-se a mesma progressão repetidamente, mas não se repetem os acordes que a materializam; a cada repetição, os acordes são substituídos por inversões pouco usuais na música popular.
A progressão harmônica ela mesma é também uma peça-chave na estruturação dessa circularidade musical. Carlos Almada (2019) mostra que a progressão que serve de base para Águas de Março é muito comum no samba. Sua característica mais distintiva é a transformação do I grau em V/IV, que enfatiza a área da subdominante e constrói um interessante contraste harmônico. Essa progressão também é um engenhoso meio de formalizar uma sensação de ciclicidade musical. O que era para ser o ponto de chegada, a tônica, transforma-se num ponto de partida, a dominante. A transformação do I grau em V/IV sugere musicalmente um recomeço, e, simbolicamente, uma ideia de esperança. É, portanto, a figuração musical da “transfiguração da dor em alegria” que caracteriza o samba brasileiro (MATOS, 2018).
No entanto, Jobim subverte o sentido usual da harmonia do samba ao dissociar da progressão o I grau dominante. Ao invés de aparecer apenas como dominante para um outro acorde, ele aparece independente já na introdução da canção. Em Águas de Março o primeiro grau dominante é também a ânsia por mudança petrificada, estática. A ciclicidade renovadora do samba transforma-se em ansiedade: o primeiro grau dominante não se resolve em uma tríade maior, expressão máxima da resolução na harmonia ocidental, mas, justamente, não se resolve, não se movimenta. Quando o faz, se direciona para um acorde igualmente instável, apenas para inevitavelmente voltar para o mesmo lugar. A força que os significados atribuídos pela história da música ocidental aos acordes habilmente manipulados por Jobim possuem torna possível a contemplação reflexiva de uma experiência de decadência, que corresponde e figura musicalmente a experiência da classe média brasileira sobre a ditatura militar. Águas de Março é singular porque em sua harmonia consagram-se e subvertem-se os sentidos atribuídos à determinados elementos musicais, tendo em vista a figuração de um sentimento de ruína que é ao mesmo tempo pessoal (porque vivido subjetivamente) e social (porque engendrado nacionalmente).
Jobim só pode manejar desta maneira a música e os seus significados porque sua instrução musical formal lhe legou as técnicas musicais de construção e desconstrução dessa tradição. A formação musical de João Gilberto, por sua vez, é radicalmente diferente: sem instrução musical formal, as suas possibilidades harmônicas e rítmicas limitam-se às possibilidades de seu instrumento: o violão, e também de sua voz. Assim sendo, porque não dispõem do piano e da orquestra, João Gilberto precisa depurar das composições os elementos estruturais, algo que não raro revela delas possibilidades inexploradas.
Em sua gravação de Águas de Março, a orquestração é substituída pela voz, violão, e caixa de lixo na qual o baterista Sonny Carr realiza um singelo acompanhamento rítmico; o ostinato da introdução é reduzido a uma marcação binária do I grau dominante em terceira inversão; a variabilidade dos acordes diminui consideravelmente se comparada à versão de Jobim, e a exclusão do interlúdio instrumental intensifica a sensação de moto-contínuo na gravação de João. Ao invés de minar a ciclicidade da canção, como faz o arranjo de Jobim, João Gilberto a intensifica ao deslocar mais intensamente a melodia. João Gilberto, ao explorar uma possibilidade melódica desconsiderada por Jobim, torna imprevisível o seu desenvolvimento, e assim acentua a sua forma circular e o sentido de ansiedade que a acompanha. Também tem efeito estimulante a simplificação harmônica que, conjugada à melodia, enfatiza a ciclicidade da progressão a despeito da invariabilidade dos acordes. Desse modo, a variabilidade harmônica que aparentemente sustentava a circularidade da composição desaparece e, no entanto, a sensação não apenas persiste, como se intensifica, sobre a harmonia simplificada. Ao eliminar os acordes e as inversões que caracterizavam a canção, João Gilberto elimina os sentidos a eles atribuídos (como vimos, pela história da música ocidental) e, desse modo, pode trabalhar o material musical enquanto tal. Assim João constrói musicalmente um sentimento de ruína dispensando os significados históricos que o Jobim precisa mobilizar. A sua interpretação de Águas de Março destaca da composição os elementos musicais essenciais, e assim revela outras possibilidades musicais e simbólicas da matéria musical que a constitui.
Podemos concluir então que Águas de Março compreende em sua forma o nexo decisivo da experiência social brasileira: o inevitável legado da tradição ocidental, que, no entanto, na periferia é reconfigurado por dinâmicas que lhes são próprias.
O 4º Seminário de Pensamento Social Brasileiro: intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, será realizado entre os dias 2 e 6 de junho de 2025, no formato híbrido. A programação presencial será realizada nas dependências do CCHN-Centro de Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito Santo, enquanto a programação virtual será transmitida pelas páginas oficiais do evento no YouTube e pela DoityPlay. Nesta edição contaremos com Conferência de Abertura, Grupos de Trabalho (modalidade virtual) e Conferência de Encerramento. Esperamos retomar o diálogo proposto nas edições anteriores do evento (1º SPSB, 2º SPSB e 3ºSPSB) que resultaram na publicação de livros oriundos das áreas temáticas presentes anteriormente (Coleção Pensamento Social Brasileiro-Volume 1 Volume 2 Volume 3 Volume 4), publicarmos novos livros oriundos desta edição do evento e que novas conexões possam ser criadas. Com esses sentimentos de alegria e reencontro, lhes desejamos boas-vindas!