Manuel Correia de Andrade e Josué de Castro: deferência sem referências (sobre um pensador social “esquecido”)

  • Autor
  • André Luiz de Miranda Martins
  • Resumo
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    Autor de obra de referência, leitura incontornável aos interessados nas complexidades da formação do Nordeste do Brasil; autor de alentada produção acadêmico-científica, que reposiciona o saber em que militou – outrora aprisionado por maneirismos de bacharéis, doravante indispensável como ferramenta intelectual para as empreitadas de transformação desse mesmo Nordeste; professor respeitado e querido, formador de gerações; homem público atuante e ilibado. Essas, entre outras possíveis, são as nada singelas credenciais apresentadas tanto por Manuel Correia de Andrade quanto por Josué de Castro para ingresso no panteão dos “Intérpretes do Nordeste” das prodigiosas gerações de 1930 a 1950, tais como Gilberto Freyre, Celso Furtado, Manuel Diégues Júnior, Câmara Cascudo, entre outros.

    Nas condições históricas de formação do pensamento social brasileiro e das interpretações do Nordeste no século XX, indaga-se, no que segue, por uma possível influência das ideias de Josué de Castro em Manuel Correia de Andrade – e particularmente em sua obra maior e mais influente, A Terra e o Homem no Nordeste, de 1963, um marco na discussão das relações de trabalho no Nordeste brasileiro, que introduz o materialismo histórico no debate geográfico regional ao tratar, por exemplo, da “proletarização do vaqueiro”. A rejeição inicial, pelo establishment acadêmico geográfico dos anos 1960, não conteria a crescente influência e adoção de A Terra e o Homem como recurso básico para qualquer esforço de compreensão da questões que atravessavam o Nordeste. Compreensão esta que, graças à inovadora abordagem manuelina, mostrava que não se chegava à geografia sem a História.

    A mencionada influência correria mesmo nesse sentido: de Castro para (ou “em”) Andrade, se se considera a senioridade do médico-geógrafo pernambucano, nascido em 1908 e sujeito científico desde 1933, quando publica suas primeiras pesquisas sobre a fisiologia da alimentação do trabalhador recifense, rapidamente ampliadas para um quadro brasileiro.

    Note-se que o reconhecimento de certa influência intelectual difere abertamente do que se costuma fazer naqueles trabalhos de apresentação da obra de certo(s) autor(es): o que se reconhece, nesse caso, é um legado intelectual e uma contribuição para a ciência; difere também dos panegíricos, dos registros da militância em campo comum (e mesmo da amizade surgida no trabalho). Estes se fizeram presentes em diversos trabalhos ou depoimentos, publicados em diversos momentos da trajetória intelectual de Manuel Correia de Andrade. Nestes, o reconhecimento dos incontestáveis méritos castreanos se entremeia ao frequente destaque da sua formação básica, originária, ser a Medicina, e não a Geografia – assim como o Direito fora a formação primeira de Manuel Correia.... Entretanto, esse “defeito de origem” parece ter sempre pesado mais nas costas de Castro. Que papel teve na definição dos campos em que se posicionam os intelectuais, por vezes se opondo abertamente, em outros momentos em tácitas aproximações?

    A questão agrária no Nordeste e, por extensão, no Brasil, é, com efeito, o tema por excelência que aproxima esses dois autores pernambucanos: tema em que desaguam as reflexões (e a exortação à ação institucional) de Josué de Castro, em sua trajetória que, nas ciências sociais e na interpretação do Brasil, inicia-se na discussão de raça/nacionalidade e alimentação  e se prolonga, no centro de sua produção acadêmico-cientifica, na discussão da oferta de alimentos para o trabalhador brasileiro; tema de partida de Manuel Correia de Andrade, desde um registro materialista histórico, sob inspiração caiopradiana.

    O desconhecimento, a distância intencionalmente demarcada ou mesmo a inabilidade com aquela chave materialista-histórica acompanharão as contribuições sociológico-geográficas e também geopolíticas do Dr. Castro ao longo de sua vida produtiva, encerrada de súbito. Seus arroubos de radicalismo se verificam nos seus anos de exílio, sem registros, contudo, de aproximações ao marxismo. Evidentemente, nada há de desabonador nisto. Por percursos teórico-metodológicos outros, Castro chegou à constatação documentada do pauperismo no Brasil, cuja evidência primeira seria a fome, em suas distintas modalidades geográficas.

    A identificação da pobreza (e da fome) com o desenvolvimento capitalista, em particular nos rincões onde este desenvolvimento se deu tardiamente, está, na verdade, no âmago do trabalho acadêmico-científico de Josué de Castro, que em seu primeiro ciclo se inicia com um inquérito – muitas vezes visto como pioneiro – sobre a alimentação dos trabalhadores do Recife no início dos aos 1930 e vai até a Geografia da Fome, sua obra magna, de meados dos 1940.

    Seria essa divergência teórica anotada entre Castro e Andrade uma razão para que este não incorporasse as contribuições daquele – tal como se constata em um exame comparativo das referências que de se vale em sua primeira edição, bem como as que acrescenta a partir da segunda edição de A Terra e o Homem no Nordeste? O que se propõe, na presente discussão, é uma tematização-problematização dessa ausência, à base de uma pesquisa bibliográfica.

    A primeira e a segunda edições de A Terra e o Homem no Nordeste saíram em 1963 e 1964, pela Editora Brasiliense; a terceira, revista e atualizada, ainda pela mesma prestigiosa editora, em 1973; a quarta, revista e atualizada, sairia em 1980, desta feita pela Editora Ciências Humanas; a quinta, acrescida do subtítulo Contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste, seria publicada pela Atlas, em 1986. À Editora Cortez caberia fechar, em 2011, o ciclo de publicações, com a oitava edição, já póstuma (Manuel Correia faleceria em 2007) e com texto revisado e ampliado a partir da 7ª edição.

    Examinada a bibliografia desta oitava e última edição de A Terra e o Homem, foi possível detectar, inclusões bibliográficas (isto é, de autores) a partir da segunda edição, com base na data de publicação constante de cada referência incluída, o que permitiu que se chegasse à data (edição) dessas inclusões. Também se identificam as permanências, fundamentais porquanto indicativas das fontes em que bebeu a análise manuelina. Destacam-se alguns desses autores, constantes já na primeira edição, seja pelo número de referências – isto é, de obras citadas, e estas predominaram absolutamente na forma de livro –, seja pela relevância do autor no debate regional/nacional, contemporâneo ao momento da inclusão: Manuel Diégues Júnior, Souza Barros, Gilberto Osório de Andrade, Orlando Valverde, Hilton Sette Filho, Mário Lacerda de Melo e Gileno de Carli (autores mais restritos à geografia ou história regionais e aos círculos pernambucanos ou nordestinos), além de Caio Prado Júnior e Gilberto Freyre, ambos muito próximos a Manuel Correia, que tanto os celebrava, e, por fim, Celso Furtado, alvo de constantes críticas, por discordâncias quanto à concepção e condução da Operação Nordeste e, posteriormente, da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste, a Sudene.

    Mas nem todos couberam na numerosa bibliografia daquele clássico da geografia econômica do Nordeste do Brasil. Sobre a seleção de autores que compuseram a 1ª edição de A Terra e o Homem no Nordeste, Manuel Correia, em um tom quase que confessional, notaria a inexplicada omissão de trabalhos de Josué de Castro como referências – sem que o médico-geógrafo pernambucano tivesse feito qualquer comentário a respeito.

    Assim colocada, por intelectual consolidado e em idade provecta, a constatação de Manuel Correia é sugestiva de aspectos das relações e das disputas de campo dos intelectuais em seus momentos napoleônico-expansionistas. Primeiro, a expectativa de um comentário – que nunca veio – da parte do autor “omitido”, possivelmente suscitada pelo conhecido zelo de Josué de Castro com suas próprias obras; segundo, a incapacidade de explicar uma escolha metodológica, transmutada em desatenção, em omissão não mais que acidental.

    Por fim, a confissão tardia, abrandada pelo tempo, que parece apontar para o reconhecimento (tardio, portanto) da contribuição de um autor frequentemente tido por outsider. Josué de Castro parecia circunscrito a determinados ambientes, mais “científicos” do que “intelectuais”. Por “técnica”, sua discussão do problema alimentar brasileiro não alçaria a seleta prateleira das interpretações do Brasil. Reconhecido nacional e internacionalmente a partir dos anos 1950, Castro não era, contudo, mobilizado pela elite do pensamento social brasileiro. Uma “prévia” ao trabalho de seu apagamento como intelectual, levado a cabo pelo Estado brasileiro a partir de 1964?

    Seria Antonio Candido, em seu Os Parceiros do Rio Bonito, o único integrante daquele sexteto canônico do pensamento social brasileiro (completado por Oliveira Vianna, Sérgio Buarque, Caio Prado, Gilberto Freyre, Celso Furtado e Florestan Fernandes) que efetivamente fez uso – para além do elogio, da menção ou da recomendação de leitura – não só da Geografia da Fome, como também de outras obras de Josué de Castro (quais sejam, Fisiologia dos Tabus e Alimentação e Raça). Em Josué de Castro, Candido identifica um especialista em nutrição alvissareiramente orientado por aspectos sociais. Mas é a Gilberto Freyre que Candido acaba creditando um tratamento mais amplo do tema... Outro trabalho importante e sobejamente elogiado, Fatores de Localização da Cidade do Recife – tese apresentada por Castro em 1947, em concurso para a cátedra de geografia humana na Universidade do Brasil – recebe certa atenção de Mário Lacerda de Melo, em seu trabalho sobre as sub-regiões de Pernambuco e da Paraíba, e também de Manuel Correia, que reconhece nele um trabalho propriamente geográfico (que, seguindo a sua observação, espelhava as pretensões de Castro de ingresso e legitimação junto à comunidade acadêmico-científica de geógrafos brasileiros).

    Irrequieto, Josué atuava em várias frentes, muitas vezes concomitantemente. Passara a primeira metade dos anos 1940 dividindo-se entre a atuação em sua frequentada clínica no Rio de Janeiro, a docência na Universidade do Distrito Federal e o trabalho que mais lhe notabilizaria nesse interregno, junto à burocracia varguista durante o Estado Novo, ajudando a fundar e dirigindo, entre 1940 e 1946, diversos órgãos e institutos responsáveis por políticas de alimentação do trabalhador (destacando-se, entre esses, o Serviço de Alimentação da Previdência Social (SAPS), de 1940 e o Serviço Técnico de Alimentação Nacional (STAN), de 1943). Volta ao governo no II Vargas, ocupando a Comissão de Bem-Estar Social; assume – como o primeiro brasileiro – direção da FAO; atua, entre 1954 e 1962, como deputado federal pelo PTB de Pernambuco por dois mandatos, com atuação política voltada à questão agrária e aos projetos de desenvolvimento no Nordeste; durante todos esses anos, tem destacada presença na mídia escrita. A culminação da projeção internacional viria com duas indicações para o Prêmio Nobel da Paz.

    Já Manuel Correia, catorze anos mais jovem que Josué – iniciava sua troca de correspondência com Caio Prado Júnior nos anos 1940, enquanto o Dr. Castro delineava as primeiras políticas de alimentação do País –, teria do Estado Novo uma lembrança um tanto amarga: meteu-o no cárcere, ainda que por curto período. Se ambos se posicionavam no espectro político do progressismo, aproximados por um mesmo projeto nacional mas com distintas vivências nos círculos do poder, o advogado-geógrafo estava mais à esquerda do médico-geógrafo.

    A Terra e o Homem no Nordeste trouxe uma abordagem pioneira à Região. Pioneira e revolucionária, porquanto desafiadora dos saberes geográficos à época estabelecidos, ao partir da noção de mosaico regional para descrever o quadro natural nordestino, de onde avança para a contextualização histórica e a identificação das diferentes estruturas de propriedade fundiária na Zona da Mata, no Agreste, no Sertão, no Litoral Setentrional e na Guiana Maranhense. Dessas estruturas resultariam distintas relações de trabalho, em torno do cortador de cana, do catador de coco ou babaçu, do carnaubeiro, do marisqueiro, do tangerino, do vaqueiro, do pescador; do trabalhador do cacau, do algodão, do sisal, do fumo, dos ribeirinhos, moradores de condição, trabalhadores rurais “proletarizados” ... Nessa lista não-exaustiva de ocupações e trabalhadores, um esforço de compreensão, em uma chave caiopradiana, do traço caboclo de nossa formação capitalista.

    Diferenças à margem não devem mascarar as convergências na geografia militante de Manuel e de Josué; tampouco a relevância e o alcance de suas contribuições intelectuais. Ambos visaram, antes de tudo, o trabalhador nordestino. Parecem persistir, entretanto, as diferenças de pontos de partida, de afiliações teóricas, pelas quais talvez se possa entender a ausência da influência castreana na discussão sobre a formação geográfico-histórica do Nordeste promovida por Manuel Correia. Deferências, sim, houve; todas póstumas, notando a contribuição de Josué de Castro para o campo da Geografia, nas quais se destaca sua Geopolítica da Fome. Dessa visão parecia despontar um Josué de Castro internacionalizado, relativamente distante do Brasil – mesmo diante do amplo reconhecimento da expertise do Dr. Castro nas áreas alimentares do Brasil, por exemplo. Ou, por outro lado, um Josué afeito à temática da fome, possivelmente a mais universal das temáticas.

    Ora, homenagens, reconhecimentos póstumos: o que significam, afinal? Tentativas de minimização da permanente tensão, entre a intelectualidade, quando se tratava da apreciação e inclusão dos trabalhos do médico-geógrafo pernambucano (e dele mesmo, enquanto intelectual)? A presente tematização procurou identificar, sem quaisquer pretensões de esgotar o tema, as tensões e contradições, as disputas de campo existentes entre na intelectualidade brasileira – da qual se elegeram dois rebentos pernambucanos – na aurora do nacional-desenvolvimentismo no País. As influências assumidas e as esquecidas. Ademais, os problemas que esse pensamento e essas obras iluminaram há seis, oito décadas atrás estão na ordem do dia, delimitando um certo Brasil que ambos queriam desaparecido: a desatenção com a saúde alimentar do trabalhador urbano; as relações de trabalho no Nordeste rural, continuamente proletarizando os trabalhadores rurais; a insuficiência ou inadequação e das políticas públicas de alimentação; a continuidade de uma imprópria convivência com as secas; e a continuidade da fome – não raro, aberta, pura e simplesmente.

     

  • Palavras-chave
  • Manuel Correia de Andrade; Josué de Castro; Nordeste; pensamento social brasileiro
  • Área Temática
  • GT9 - Pensamento Social Brasileiro e Historiografia: problemas, aproximações, possibilidades
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