Disputa entre poderes na definição das regras eleitorais: uma análise das decisões sobre as cotas de gênero na política brasileira

  • Autor
  • Caroline Bianca Graeff
  • Resumo
  •  

    Desde 1995, o Brasil tem incorporado em sua legislação eleitoral regras que procuram contornar a sub-representação de gênero. A política de cotas de mulheres em candidaturas e, mais recentemente, a inclusão da distribuição proporcional das verbas públicas de financiamento de campanha e do horário gratuito de propaganda eleitoral (HGPE) para as candidatas, são os principais mecanismos institucionais adotados no País. 

    O presente trabalho objetiva estudar a relação entre os poderes a partir da atuação do Poder Judiciário relacionada às ações afirmativas de gênero na política, tendo por base as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.617/2018 e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na Consulta nº. 0600252-18.2018.6.00.000, e analisando a recepção política a essas determinações, as possíveis ações e estratégias do Poder Legislativo frente a elas, consubstanciadas na Emenda Constitucional (EC) 117/2022 e na Emenda Constitucional nº 133/2024, esta última resultado das discussões da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 9/2023, chamada de PEC da Anistia.

    A metodologia compreende revisão da literatura que aborda a temática e uma análise documental das decisões do TSE e do STF mencionadas e das ações do Congresso Nacional na aprovação das Emendas Constitucionais. Para tanto, utiliza-se a tipologia proposta por Ferraz Júnior (2008).

    O autor distingue três diferentes estratégias, utilizadas de modo combinado, conforme o caso, com vistas a reverter no todo ou em parte uma decisão do judiciário em matéria eleitoral. A primeira delas é a reformadora, relativa à apresentação de ADIs, com a intenção de invalidar a decisão. A segunda é a estratégia judicial preventiva, correspondente à apresentação de consultas ao TSE com vistas a dirimir dúvidas relativas à extensão da decisão. A terceira é a refratária, que visa a produzir norma legal capaz de fixar nova interpretação à medida, divergente daquela estabelecida pelo Judiciário (FERRAZ JÚNIOR, 2008).

    Tendo como norte esta tipologia, observa-se a atuação do Congresso Nacional após as decisões de 2018 do STF e do TSE. Na ocasião, o Supremo julgou a ADI nº 5.617, proposta pela Procuradoria-Geral da República (PGR), determinando que o montante do fundo partidário alocado para financiar as campanhas eleitorais deverá ser aplicado proporcionalmente ao número de mulheres candidatas (Brasil, STF, ADI nº 5.617/2018).  Já o TSE, em resposta à Consulta nº. 0600252-18.2018.6.00.000, expôs sua posição sobre a necessidade de expandir a interpretação para abarcar também a obrigatoriedade da destinação de maneira proporcional dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, bem como do tempo no HGPE à participação feminina (Brasil. TSE, Consulta nº 0600252-18.2018.6.00.0000).

    A resposta do Congresso Nacional veio com a Emenda Constitucional 117, de 2022, que incorporou à Constituição Federal os entendimentos estabelecidos pelos Tribunais (GRAEFF, LANDA, 2024). No entanto, essa incorporação veio acompanhada de uma anistia às irregularidades cometidas anteriormente. A EC determinou a absolvição da responsabilidade dos partidos políticos que não cumpriram as determinações dos Tribunais sobre a destinação proporcional dos recursos de financiamento público para campanhas de mulheres até a data da sua promulgação. Assim, a regra passaria a ser exigida apenas a partir das eleições de 2022.

    Após o pleito de 2022 e frente à possibilidade efetiva de cobrança e responsabilização pelos termos aprovados na EC 117, o Congresso volta a se debruçar sobre o tema na PEC 9/2023. A Proposta previa em seu texto inicial a modificação do artigo 3º da EC 117/2022 propondo uma nova anistia aos partidos que descumpriram as cotas de gênero e raciais nas eleições de 2022 e nos anos anteriores, proibindo a aplicação de quaisquer sanções, sejam multas ou suspensão do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (BRASIL, PEC nº. 9, 2023).

    Em resumo, tem-se o seguinte panorama temporal: primeiro, há uma atuação do STF e do TSE visando interpretar a norma e estabelecer os parâmetros relativos às cotas de gênero; em um segundo momento tem uma estratégia refratária do Congresso que aprova a EC 117/2022 estabelecendo que as regras relativas às cotas devessem ser aplicadas apenas a partir de 2022; terceiro, há as eleições de 2022 e o descumprimento das regras por inúmeros partidos políticos; quarto há uma nova ação do Congresso Nacional, visando modificar a EC 117/2022 para anistiar os partidos descumpridores da norma na PEC 9.

    Entende-se que a PEC 9/2023 não se encaixa em nenhumas das três estratégias apresentadas por Ferraz Júnior (2008). Ela visa modificar, em última instância, legislação aprovada pelo próprio Congresso antes de o Judiciário julgar as possíveis irregularidades das eleições de 2022. Diante disso, propõe-se a criação de uma quarta categoria, que exemplifique outra possibilidade de atuação do legislativo visando barrar a ação dos Tribunais em matéria eleitoral antes mesmo deles se manifestarem, uma estratégia pré-incidental reformadora.

    Importante evidenciar que na versão final do texto da PEC 9/2023 que foi aprovada e resultou na EC nº 133/2024 houve a supressão da parte que previa a anistia ao descumprimento das cotas de gênero. Contudo, as discussões da PEC demonstram a forte oposição à aplicação das regras que buscam inserir mulheres nestes espaços, culminando em constantes descumprimentos à previsão legal e em uma postura pró manutenção do status quo existente nos espaços de decisão política, visando à permanência de uma elite política majoritariamente masculina.

    Observa-se, ao fim, primeiro uma estratégia refratária do Congresso frente à atuação do Judiciário ao aprovar a EC 117/2022 e depois uma estratégia pré-incidental reformadora, presente nas discussões da PEC 9/2023.

     

  • Palavras-chave
  • Poder Legislativo; Poder Judiciário; cotas de gênero
  • Área Temática
  • GT3 - Elites, poder e instituições democráticas
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