bixarias e contra-colonização: epistemologias bixas e implosão da identidade nacional cisheterocolonial

  • Autor
  • Adisa Gabriel Nascimento Carlini
  • Co-autores
  • Larissa Evellyn Lourenço
  • Resumo
  • Quem escreve este texto é uma bixa afro-pindorâmica. No momento em que escreve, encontra-se transitando e confluenciando no solo capixaba — terra onde o movimento trans brasileiro fincou suas primeiras raízes militantes, e que, contraditoriamente, permanece como um dos Estados mais conservadores, transfóbicos e racistas do país. Ao caminhar pelas ruas de Vila Velha, onde minha criança nasceu, percebo os olhares que se voltam para o corpo que suporto — olhares muitas vezes inconscientes, mas atravessados pela “consciência da cultura brasileira” (Gonzalez, 1984, p. 226), denunciando assim o passado-presente “cis’colonial” (Thiffany Odara, 2022).

    Com Lélia, entendemos que “como consciência a gente entende o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do esquecimento e até do saber. É por aí que o discurso ideológico se faz presente” (Gonzalez, 1984, p. 226). Essa consciência opera articulada ao “Nome-do-Pai” (Lacan, 2022), forjando processos de adestramento e assujeitamento à norma cultural — aquilo que, como Isildinha aponta via Lévi-Strauss, ordena a experiência em sociedade para facilitar a comunicação (Nogueira, 2021, p. 61).

    A identidade nacional brasileira se construiu na fantasia de uma unidade miscigenada e pacífica, mas sustentada por estruturas coloniais, cisheteronormativas, raciais e patriarcais. Essa narrativa dominante, celebrada por boa parte do pensamento social brasileiro, produziu a denegação das dissidências. A bixa preta surge como contra-narrativa   a dita identidade nacional — ou melhor, como uma estratégia viva de contra-colonização.

    Não tomamos a bixa como objeto de estudo no aparato colonial, mas como nativa de um mundo autônomo. Investigamos as bixarias como práticas de enfrentamento que atravessam o corpo, a oralidade e a linguagem. Performances que invocam epistemologias travestis, sodomitas e não-lineares, em confronto direto com o epistemicídio promovido pela ciscolonialidade.

    A bixaria é compreendida como dispositivo mágico, político e pedagógico — articulando saberes ancestrais com tecnologias de subversão do tempo-espaço. Não reivindicamos identidades estáveis. Dobramos o gênero, zombamos do nacionalismo e desmontamos o fetiche da identidade. Propomos uma epistemologia que se dá no ritual, na ironia, na poética e na transmutação.

    A bixa preta emerge como sujeito de sua própria narrativa — denunciando as violências da cisgeneridade compulsória, da branquitude e do patriarcado, mas também instaurando outras formas de existir e conhecer, para além da norma nacional.

    Propomos uma transa. Psicanálise e ciências sociais se encontram. Friccionamos uma contra a outra e, a partir disso, tramamos mais uma corda para nossa trança. Como nos disse Lélia: “na medida em que nós, negros, estamos na lata de lixo da sociedade brasileira, pois assim o determina a lógica da dominação, caberia uma indagação via psicanálise” (Gonzalez, 1984, p. 225). Ora, se a bixa que falamos é a bixa afro-pindorâmica, a psicanálise, por sua vez, precisa aprender a escutar bixas — ao invés de nos denegar.

    Também não esquecemos da tese marxista-leninista: “Compreender as massas” (Lênin, 1992, p. 333). Muito se engana quem diz que bixa é minoria. Somos muitas. Nos multiplicamos “como um vírus que contamina suas ideias” (Quebrada, 2021). Constituimos massas, comunidades, mundos próprios — com símbolos, epistemologias, rituais e códigos.

    O que queremos propor é que as bixas pretas se apropriem do método analítico, estabelecendo uma confluência entre as bixarias e os saberes psicanalíticos. Não se trata apenas de inserir a psicanálise nas epistemologias bixas — queremos que a bixaria devore a psicanálise, mastigue com fúria, engula, digira, absorva o que serve e cuspa o que não nos será útil. A experiência bixa implode a psicanálise, roda, gira tudo, bota de cabeça pra baixo.

    A bixa não se traduz: faz da linguagem uma arma, da arte uma oração e da performance uma estratégia de guerra. É um corpo que fala, dança, subverte e produz saber — não para se encaixar na moldura da identidade nacional, mas para estilhaçá-la. Porque a identidade brasileira, forjada na fantasia da harmonia racial e na domesticação do desejo, precisa negar corpos como o nosso para se sustentar. Ao convocar as epistemologias bixas, afirmamos não apenas uma crítica à tradição do pensamento social brasileiro, mas um gesto radical de refundação: somos a rachadura no espelho da Nação.

     

    Bibliografia:

     

    LACAN, J.; MILLER, J. A terceira: teoria de lalingua. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.

     

    LENIN, V. Texto XLV. Sobre o Papel e as Tarefas dos Sindicatos nas Condições da Nova Política Econômica [Resolução do CC do PC(b) da Rússia] (Vladimir Lênin – 4 de Janeiro de 1922) In. LENIN, V. Sobre os sindicatos. Digitalização: José Joaquim Paz Fonte: https://www.marxists.org/portugues/lenin/livros/sindicato/index.htm 

     

    NOGUEIRA, Isildina Baptista. A cor do inconsciente: significações do corpo negro. 1. ed. São Paulo: Perspectiva, 2021. (Palavras Negras; v. 7).

     

    ODARA, Thiffany. A Cis’colonialidade e a transfobia imaginaria In. Gritarias epistemicas / organizadoras: Megg Rayara Gomes de Oliveira, Leticia Carolina Nascimento, Jaqueline Gomes de Jesus. - 1.ed. Salvador: Devires, 2022. p. 134-139

     

    QUEBRADA, Linn da. Quem Soul Eu?. 2021 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7P2dd1ZCZEM Acesso em 26 de março de 2025

  • Palavras-chave
  • Bixas; psicanalise; dissidência;
  • Área Temática
  • GT10 - Pensamento Social Brasileiro nos currículos da educação básica e superior
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O 4º Seminário de Pensamento Social Brasileiro: intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, será realizado entre os dias 2 e 6 de junho de 2025, no formato híbrido. A programação presencial será realizada nas dependências do CCHN-Centro de Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito Santo, enquanto a programação virtual será transmitida pelas páginas oficiais do evento no YouTube e pela DoityPlay. Nesta edição contaremos com Conferência de Abertura, Grupos de Trabalho (modalidade virtual) e Conferência de Encerramento. Esperamos retomar o diálogo proposto nas edições anteriores do evento (1º SPSB2º SPSB e 3ºSPSB) que resultaram na publicação de livros oriundos das áreas temáticas presentes anteriormente (Coleção Pensamento Social Brasileiro-Volume 1 Volume 2 Volume 3 Volume 4), publicarmos novos livros oriundos desta edição do evento e que novas conexões possam ser criadas. Com esses sentimentos de alegria e reencontro, lhes desejamos boas-vindas!

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