Entre as múltiplas expressões culturais que compõem o panorama artístico contemporâneo, os quadrinhos ocupam um espaço peculiar, simultaneamente acessível e marginalizado, popular e sofisticado, efêmero e resistente. No Brasil, os quadrinhos têm sido, historicamente, um veículo de circulação de ideias, imaginação social e crítica política. Se, por um lado, figuras como Tio Patinhas ou Capitão América representaram ideologias dominantes, por outro, obras como Maus (Spiegelman), Palestina (Sacco), e, mais recentemente, as produções de autores como Marcelo D'Salete e Hugo Canuto, vêm tensionando narrativas hegemônicas, sobretudo no que tange à questão racial.
Neste cenário, observa-se a emergência de uma nova geração de quadrinistas cujas obras articulam autoria negra, representação e formas de resistência simbólica. Essas produções, ao mesmo tempo em que desafiam estereótipos raciais historicamente consolidados, reconfiguram o espaço simbólico e editorial dos quadrinhos no Brasil. Tal movimento, ainda em consolidação, suscita uma série de indagações, trata-se de um subcampo autônomo em formação? Uma cena emergente de caráter periférico? Ou uma tendência mercadológica transitória? Este resumo expandido busca apresentar os primeiros passos de uma investigação sociológica sobre o fenômeno dos chamados “quadrinhos negros” no Brasil contemporâneo.
Assim, este trabalho tem como objetivo analisar a relação entre os quadrinhos nacionais e a questão racial brasileira, com ênfase em produções que articulam autoria, conteúdo e recepção a partir da experiência negra. Partimos da hipótese de que a crescente presença de quadrinhos que tematizam as relações raciais, produzidos por autores negros e não negros, pode indicar a consolidação de um subcampo ou de uma tendência contra-hegemônica no interior do campo dos quadrinhos nacionais. O estudo propõe investigar como esses agentes e suas obras tensionam representações históricas, disputam espaços de consagração simbólica e contribuem para a reconfiguração da identidade nacional e das narrativas gráficas no Brasil.
A escolha pelos quadrinhos como objeto de estudo se justifica por seu papel historicamente ambíguo, ao mesmo tempo em que serviram à reprodução de estereótipos raciais e ideologias coloniais, também se consolidaram como ferramenta potente de crítica, memória e imaginação social. No Brasil contemporâneo, observa-se uma produção significativa de quadrinhos que tematizam a experiência negra, como Angola Janga (Marcelo D’Salete), Contos dos Orixás (Hugo Canuto), Jeremias: Pele e Jeremias: Alma (Rafael Calça e Jefferson Costa), entre outros. Tais obras vêm conquistando reconhecimento no mercado editorial, em premiações e no debate público. Contudo, ainda é necessário compreender sociologicamente quais processos sociais, culturais e econômicos tornam essas produções possíveis, e de que modo elas reconfiguram as fronteiras simbólicas do campo dos quadrinhos.
Teoricamente, o trabalho se ancora na sociologia da cultura e na teoria dos campos de Pierre Bourdieu, compreendendo o campo dos quadrinhos como um espaço relativamente autônomo de produção cultural, no qual agentes disputam posições, legitimidade e capital simbólico. Também dialogamos com a noção de "mundo dos quadrinhos" (BEATY, 2001), articulando-a à distinção entre campo e cena, enquanto o campo pressupõe regras internas e hierarquias, a cena se refere a redes mais fluídas e instáveis de produção e circulação. A depender das evidências empíricas, avaliaremos se a produção racializada opera como um subcampo em consolidação ou como uma cena emergente, ainda subordinada a estruturas maiores.
Os quadrinhos sempre estiveram entre os meios de expressão mais acessíveis para a juventude, seja em fanzines xerocados, blogs independentes ou plataformas digitais. Essa acessibilidade, no entanto, não se traduz em igualdade de condições no acesso ao reconhecimento simbólico ou ao mercado editorial. A despeito da diversidade de temas e formatos, as narrativas protagonizadas por personagens negros — e, especialmente, criadas por autores negros — sempre ocuparam uma posição marginal no circuito oficial de consagração.
Nos últimos anos, contudo, o aumento da visibilidade de obras com temática racial, o reconhecimento de autores negros em premiações nacionais e a expansão do mercado de quadrinhos alternativos indicam uma inflexão no campo. O trabalho de autores como D’Salete, Canuto e Quintanilha aponta para uma reconfiguração estética e simbólica na produção quadrinística nacional. Essa tendência reflete transformações mais amplas, como a mobilização de movimentos negros, as políticas de ação afirmativa e a popularização de instrumentos de financiamento coletivo.
Partindo da hipótese de que está em curso a formação de um novo espaço de disputa dentro do campo dos quadrinhos nacionais, esta pesquisa busca compreender os processos sociais, culturais e simbólicos que modulam essa emergência. Interessa-nos analisar como essas produções desafiam representações hegemônicas, quais estratégias de legitimação são mobilizadas pelos autores, e de que modo se estruturam as redes de circulação e consagração dessas obras.
Objetivo geral: investigar como os chamados “quadrinhos negros” reconfiguram as dinâmicas de produção, representação e legitimação no campo dos quadrinhos nacionais, analisando sua inserção como uma possível tendência contra-hegemônica ou subcampo emergente.
Objetivos específicos: analisar como autores e obras que abordam a questão racial desafiam estereótipos historicamente consolidados na narrativa gráfica brasileira; mapear as redes de consagração, circulação e legitimação desses quadrinhos; identificar os capitais mobilizados por quadrinistas negros ou que abordam a temática racial para alcançar reconhecimento no campo; compreender os impactos sociais, simbólicos e editoriais dessas produções para a reconfiguração do campo dos quadrinhos; investigar as formas de recepção crítica e pública das obras selecionadas; contribuir para a reflexão teórica sobre a relação entre arte, raça e campo cultural no Brasil contemporâneo.
A pesquisa fundamenta-se, prioritariamente, na teoria dos campos de Pierre Bourdieu, que concebe os campos culturais como espaços relativamente autônomos, estruturados por relações de força e disputas por capitais simbólicos. A noção de campo será utilizada para compreender o “mundo dos quadrinhos” como um universo dotado de regras específicas, hierarquias e formas de consagração próprias, em constante disputa entre polos dominantes e dominados.
Além de Bourdieu, dialogamos com a proposta de Bart Beaty (2001), que trata os quadrinhos como um “mundo da arte” institucionalmente estruturado, com fronteiras porosas entre mercado, crítica e produção. A distinção entre campo (como estrutura objetiva de posições e capitais) e cena (como rede fluida e informal de circulação e pertencimento) é mobilizada para refletir sobre os limites e potencialidades de um novo segmento racializado dentro do campo quadrinístico nacional.
Também são referências importantes Nobuyoshi Chinen (2013), cuja tese realiza um inventário abrangente das representações negras nos quadrinhos brasileiros, servindo como base empírica e historiográfica para nosso trabalho; Alexandre Linck Vargas (2015), que propõe uma desconstrução crítica do conceito de quadrinhos e destaca sua dimensão estética e política, especialmente ao explorar os “espaços vazios” ou “sarjetas” como zonas de significação. André Pereira de Carvalho (2017), que aplica a teoria bourdieusiana ao campo dos quadrinhos brasileiros, destacando o papel do crowdfunding como mecanismo de redistribuição de capital simbólico e inserção de novos agentes.
Ao articular esses referenciais, buscamos refletir não apenas sobre as disputas por reconhecimento dentro do campo, mas também sobre como a forma gráfica — o nanquim — é atravessada por conteúdos sociais — o noir —, resultando em novas práticas culturais e simbólicas.
A teoria do campo de Pierre Bourdieu será mobilizada para analisar as disputas simbólicas na produção nacional de quadrinhos. Trabalharemos com os conceitos de campo — estrutura de posições em disputa —, habitus — trajetórias e disposições dos agentes — , capital cultural — instrumentos de legitimação — e poder simbólico — disputas por reconhecimento. Os quadrinhos serão entendidos como um espaço social marcado por disputas, onde agentes como autores, editoras, leitores e críticos competem por reconhecimento e visibilidade.
Também analisaremos como os quadrinhos que abordam questões raciais se inserem nesse espaço e em que medida tensionam as estruturas de poder e consagração existentes. Queremos compreender se esses agentes conseguem subverter as hierarquias ou se negociam sua inserção de forma adaptativa às regras estabelecidas.
Essa abordagem exige flexibilidade metodológica por dois motivos, a dinamicidade do campo e a diversidade dos agentes. Métodos fixos não seriam capazes de captar a fluidez das posições, as formas de consagração emergentes ou as redes de solidariedade e reconhecimento. Por isso, adotamos uma combinação de métodos qualitativos e quantitativos, com foco em dois eixos principais: a) recepção e legitimação, analisaremos como essas obras são recebidas por diferentes segmentos do público e da crítica. Os critérios de seleção dos autores se dará por recepção crítica — resenhas especializadas e acadêmicas —, circulação em redes e plataformas, presença em premiações e eventos, e recepção do público — comentários, avaliações e discussões online. b) Análise das redes de poder e circulação: mapearemos as relações de poder e influência no campo dos quadrinhos, identificando agentes centrais e periféricos. Aplicaremos entrevistas semiestruturadas com autores, editores, críticos e outros agentes relevantes, buscando compreender suas trajetórias, estratégias de visibilidade e experiências no campo. Investigaremos também a interação entre circuitos independentes e editoras tradicionais, e os obstáculos enfrentados para inserção no mainstream.
Nosso objetivo é construir uma topografia social do campo, revelando como os quadrinhos negros circulam, ganham reconhecimento e disputam legitimidade. Como Bourdieu alerta, o campo social não é um laboratório controlado, por isso, a vigilância epistemológica se torna ainda mais necessária para evitar reducionismos. Nossa pesquisa visa não apenas constatar regularidades, mas compreender as estruturas simbólicas e sociais que condicionam e possibilitam a emergência desses agentes e obras no campo.
Para fins analíticos, adotamos o termo “quadrinhos negros” entre aspas, reconhecendo as disputas conceituais em torno de sua definição. A expressão não é tomada como categoria estanque nem como campo consolidado, mas como categoria analítica em suspensão, que permite articular autoria, conteúdo e recepção sem reduzir a análise a apenas um desses aspectos. Consideramos tanto obras de autores negros cujas vivências informam diretamente suas narrativas, quanto produções que tematizam a experiência negra independentemente da identidade racial de seus autores. A proposta é evitar essencialismos e tratar a racialização dos quadrinhos como um fenômeno social e simbólico que envolve disputas de significado, reconhecimento e pertencimento.
Ao investigar as formas pelas quais os chamados “quadrinhos negros” interagem com os debates raciais no Brasil e disputam posições de prestígio no campo cultural, este trabalho pretende contribuir para a ampliação dos estudos sobre cultura, arte e raça no contexto brasileiro. Interessa-nos, sobretudo, compreender como tais produções constroem novas mitologias, tensionam representações hegemônicas e oferecem outras possibilidades de leitura do país, de seu passado e de seu presente.
Por fim, esta pesquisa se propõe como um ato de combate simbólico: desvelar as estruturas do campo dos quadrinhos, tensionar suas hierarquias, e demonstrar como ele pode ser simultaneamente espaço de reprodução e de transformação social.
Até o presente momento, foram realizadas as seguintes etapas, revisão bibliográfica abrangente, com destaque para as contribuições de Chinen (2013), Vargas (2015), Beaty (2001) e Carvalho (2017), além do acúmulo teórico em torno da obra de Pierre Bourdieu; levantamento preliminar de dados sobre publicações de quadrinhos com temática racial no Brasil entre 2010 e 2023, com base em editoras, prêmios, eventos e plataformas digitais; mapeamento inicial de autores e obras que articulam questões raciais e que têm obtido reconhecimento nos circuitos editorial e crítico; definição dos critérios de seleção das obras e sujeitos da pesquisa, com base em visibilidade, recepção crítica e circulação alternativa; formulação e teste de roteiro de entrevistas semiestruturadas, a ser aplicado junto a autores e agentes do campo.
Essas etapas forneceram elementos para a consolidação da hipótese de que está em curso um processo de reconfiguração simbólica e estrutural no campo dos quadrinhos brasileiros, impulsionado pela emergência de novos sujeitos e narrativas que tensionam as fronteiras do campo.
O presente trabalho aponta para a existência de uma produção quadrinística racializada que não apenas amplia os repertórios simbólicos disponíveis na cultura brasileira, mas que também reivindica novos lugares no interior do campo cultural. Os chamados “quadrinhos negros” operam uma inflexão crítica sobre as formas de representação da identidade nacional, da negritude e da memória coletiva. Mais do que meras expressões estéticas, essas obras se constituem como dispositivos de disputa simbólica, desafiando as estruturas hierárquicas da cultura dominante.
Ao mesmo tempo, essas produções emergem em um campo ainda marcado por desigualdades estruturais e barreiras de consagração, sendo muitas vezes confinadas ao nicho da produção independente. A pesquisa em andamento busca compreender se essas obras estão inaugurando um subcampo relativamente autônomo ou se sua inserção está sendo absorvida por dinâmicas mercadológicas mais amplas, sem alterar de fato a estrutura do campo.
Combinando teoria sociológica, crítica cultural e análise empírica, esta investigação espera contribuir para uma compreensão mais complexa da articulação entre arte, raça e campo cultural no Brasil contemporâneo, abrindo caminhos para o fortalecimento dos estudos sobre quadrinhos como objeto legítimo da sociologia da cultura.
BEATY, Bart. Comics versus art. University of Toronto Press, 2012.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Perspectiva, 2005.
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo: companhia das letras, v. 199, 1996.
CARVALHO, André Pereira de. Uma mão lava a outra: crowdfunding e novas formas de produzir quadrinhos no Brasil. 2017. 278 f. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2017.
CHINEN, Nobuyoshi. O papel do negro e o negro no papel: representação e representatividade dos afrodescendentes nos quadrinhos brasileiros. 2013. 321 f. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
VARGAS, Alexandre Linck. A invenção dos quadrinhos: teoria e crítica da sarjeta. 2015. 299 f. Tese (Doutorado em Literatura) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015.
O 4º Seminário de Pensamento Social Brasileiro: intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, será realizado entre os dias 2 e 6 de junho de 2025, no formato híbrido. A programação presencial será realizada nas dependências do CCHN-Centro de Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito Santo, enquanto a programação virtual será transmitida pelas páginas oficiais do evento no YouTube e pela DoityPlay. Nesta edição contaremos com Conferência de Abertura, Grupos de Trabalho (modalidade virtual) e Conferência de Encerramento. Esperamos retomar o diálogo proposto nas edições anteriores do evento (1º SPSB, 2º SPSB e 3ºSPSB) que resultaram na publicação de livros oriundos das áreas temáticas presentes anteriormente (Coleção Pensamento Social Brasileiro-Volume 1 Volume 2 Volume 3 Volume 4), publicarmos novos livros oriundos desta edição do evento e que novas conexões possam ser criadas. Com esses sentimentos de alegria e reencontro, lhes desejamos boas-vindas!