Resumo
Na trilha de várias discussões recentes sobre o legado intelectual e político da pensadora Lélia Gonzalez (e.g., Cardoso, 2014; Fonseca, 2022; Rios e Klein, 2022), o presente trabalho ensaia uma leitura analítica da obra da autora brasileira à luz de preocupações centrais à teoria social contemporânea.
A primeira de tais preocupações consiste na busca de uma visão multidimensional da relação entre economia, cultura e psique: uma visão que, escapando igualmente de reducionismos materialistas e idealistas, apreende aqueles domínios da vida social como relativamente autônomos e, ao mesmo tempo, interinfluentes (e.g., Alexander, 1987; Peters, 2019). Segundo a interpretação aqui ensaiada, um esquema multidimensional dessa natureza está no cerne mesmo do pensamento de Lélia. Ela o desenvolve tanto mediante argumentação teórica abstrata, como em seus diálogos com a noção de “ideologia” trabalhada no(s) marxismos(s) estruturalistas(s) de Althusser e Poulantzas (Gonzalez, 2020: 34), quanto em seus diagnósticos de cenários sócio-históricos particulares, como em sua desmistificação sociológica do “milagre econômico” (1968-1973) durante a ditadura militar ou, ainda, em sua demonstração do papel da cultura na reprodução de desigualdades econômicas, exemplificado pela exclusão de negras em setores significativos do mercado de trabalho devido a um critério racista de “boa aparência” (Ibid.: 42).
A segunda preocupação envolve a “interseccionalidade”, detalhadamente teorizada por Lélia como fenômeno societal substantivo muito antes que o termo propriamente dito se tornasse corrente nas ciências sociais. Seu raciocínio pensa fenômenos interseccionais no retrato de estruturas entrelaçadas de dominação (e.g., classe, raça, gênero, sexualidade), mas também como desafio estratégico posto a movimentos sociais (e.g., a tarefa de pautar a questão racial no movimento feminista e a questão de gênero no movimento negro). Em ambos os domínios de inquérito, Lélia maneja os propósitos centrais que motivaram a construção posterior daquele conceito por Kimberlé Crenshaw (1989), como o senso simultâneo de que, por um lado, as intersecções entre diversos marcadores de identidade/diferença (ou, para usar outro vocabulário, diversas modalidades de “estratificação”) possuem uma dimensão “aditiva”, mas também, por outro lado, que as mesmas intersecções produzem efeitos cuja complexidade ultrapassa a simples adição. Sua principal ilustração desse ponto advém, uma vez mais, da condição de mulheres negras no Brasil e alhures: se é verdade que a intersecção entre raça e gênero as leva a sofrerem tanto com o racismo quanto com o sexismo como opressões estruturais, tal intersecção também é capaz de gerar uma solidariedade entre mulheres e homens negros devido à sua exposição compartilhada ao racismo.
A terceira preocupação analítica que pretendo identificar na obra de Lélia consiste em um diálogo entre ciência social e psicanálise, diálogo no qual a última não é utilizada somente para dar conta de dimensões da psique que se mostram resistentes ou recalcitrantes à influência social, mas como uma ferramenta de análise histórico-cultural ela própria. Afirmo, em outras palavras, que a autora brasileira delineia o programa de uma “psicanálise da cultura” em suas complexas noções de “consciência”, “memória” e de “atos falhos” socioculturais (por exemplo, aqueles pelos quais o racismo denegado no Brasil se manifesta nas frestas e lapsos da linguagem cotidiana). Apoiada em uma concepção particular da “virada linguística” imprimida por Lacan à psicanálise (2020: 337-349), Lélia desdobrou essa visão em dois eixos analíticos que também prefiguraram tendências epistemológicas centrais nas ciências sociais e nas humanidades no final do século XX.
Na primeira inflexão de sua psicanálise cultural, a autora se baseia provocativamente na ideia de “lata de lixo” da sociedade (Ibid.: 77) para se aproximar de uma visão que veio a ser designada posteriormente de “standpoint epistemology” ou “epistemologia do ponto de vista” (Harding, 1996). Isto porque Lélia sugere não apenas uma interpretação da condição da mulher negra no Brasil, mas algo mais ambicioso: uma interpretação da sociedade brasileira desde a perspectiva da mulher negra, perspectiva capaz de apreender o racismo e o sexismo como pilares estruturais daquela sociedade de uma maneira dificilmente disponível a pontos de vista interseccionais por ela privilegiados.
Lélia também desenvolve uma interrogação sobre relações de dominação que não procura surpreendê-las somente na realidade sócio-histórica, mas também no próprio domínio da epistemologia e da textualidade científico-social, isto é, nos pressupostos pelos quais o saber histórico-social é construído e expresso na linguagem. Para além de momentos sugestivos, como o estilo “desconstrucionista” (diríamos hoje) da crítica que ela dirige a Caio Prado Júnior (2020: 83-84), sustentarei que Lélia também empregou tal chave interpretativa para superar oposições simplistas entre dominação e resistência na história dos negros no Brasil. Ela o fez, ademais, de maneiras que alcançam uma mediação dialética, quando não uma superação crítica, de debates clássicos no pensamento social e na sociologia brasileiros (e.g., entre Gilberto Freyre e Florestan Fernandes).
Resumo expandido
1. Economia, cultura e psique: uma concepção multidimensional e antirreducionista do social (no Brasil e alhures)
Gonzalez não apenas produz uma síntese criativa de abordagens teóricas diversas, mas também alterna entre diferentes registros analíticos e estilos expressivos, os quais vão de artigos acadêmicos recheados de estatísticas até ensaios borrifados com gírias e tiradas irônicas. Na dimensão da teoria, seu diálogo com o marxismo tem uma sensibilidade “amefricana”, atenta ao caráter dependente do capitalismo brasileiro no sistema econômico internacional, bem como às conexões funcionais dessa dependência com a estrutura de classes interna ao Brasil. O foco sobre tais conexões permitia a ela elucidar, como fizeram contemporâneos seus tais quais Florestan Fernandes, a atuação de uma classe dominante que, lucrando com a dependência, defendia seus interesses até o ponto de operar frequentemente como inimiga do povo, tanto no âmbito socioeconômico quanto na esfera política (e.g., em seu apoio a regimes autoritários como a ditadura militar [Trindade, 2020]).
Em um texto no qual Lélia se debruça sobre o dito “milagre econômico” entre os anos de 1968 e 1973, por exemplo, a autora mostra como o crescimento observado no período, longe de ser acompanhado por uma distribuição de renda que diminuísse o fosso entre ricos e pobres, intensificou a desigualdade entre uns e outros (2020: 95). Lélia também sua combina sua análise crítica do capitalismo dependente no Brasil a um diagnóstico de desigualdades inter-regionais, bem como a um interesse candente por problemas urbanos. Ela nota, por exemplo, que a intensificação da desigualdade socioeconômica propiciada por uma “modernização conservadora excludente” (Ibid.: 96) se manifestou em um “inchaço” dos centros citadinos atrelado a dinâmicas de “favelização”.
Ao mesmo tempo, a própria autora aponta que a análise socioeconômica, mesmo quando corrige uma concentração economicista sobre o crescimento por uma investigação sociológica da desigualdade, não é suficiente, por si só, para o entendimento da dinâmica social no Brasil, inclusive nas próprias esferas da vida material. É nesse entroncamento que ela introduz a inter-relação dinâmica da economia com a cultura, rastreando o papel de ideias e representações acerca das relações raciais na sociedade brasileira: do mito da “democracia racial” até as imagens da “mulata”, passando pelo significado (racista) da noção de “boa aparência” como critério para contratação de mulheres em diversas profissões.
Alguns dos principais liames analíticos pelos quais Lélia pensa a relação entre cultura e economia, como lembram Márcia Lima e Flávia Rios (2020: 12), advêm de marxistas francófonos como Louis Althusser e Nicos Poulantzas, mobilizados pela autora sobretudo como teóricos da ideologia. Como ideologia, por exemplo, o mito da democracia racial no Brasil não é apenas empiricamente falso, escamoteando a existência do fenômeno real do racismo à brasileira, mas também funcional à reprodução das relações raciais assimétricas que ele (o mito) nega (2020: 31).
O diálogo de Lélia com o marxismo francês também se revela na sua atenção simultânea a representações ideológicas e sistemas de práticas sociais. Essa dimensão prática ou “praxiológica” das estruturas de dominação aparece nas dinâmicas de naturalização das desigualdades. O racismo não se reproduz somente mediante alguma mistificação ideológica no plano discursivo (por exemplo, nos ditos segundo os quais “Aqui não tem diferença porque todo mundo é brasileiro acima de tudo...Preto aqui é bem tratado...Tanto é que, quando se esforça, ele sobe na vida como qualquer um” e assim por diante [Ibid.: 78]), mas também se reproduz quando as desigualdades são experimentadas na prática como se fossem a ordem natural das coisas – por exemplo, quando se percebe como “natural” que, em um restaurante de classe média alta, a grande maioria dos clientes seja formada de brancos, ao passo que a grande maioria dos atendentes seja formada de negros.
Isto dito, a despeito de uma remissão ocasional de sabor althusseriano à determinação econômica “em última instância” (Ibid.: 29), creio que a relação entre economia e cultura postulada por Lélia se aproxima in actu da abordagem que figuras de proa da teoria social contemporânea no Atlântico Norte, como Nancy Fraser (2003: 60) e Hartmut Rosa (2023: 185), chamariam depois de “dualismo perspectivístico”: uma teorização na qual aquelas esferas, “devidamente dialetizadas” (Gonzalez, 2020: 33), são tidas por relativamente autônomas e, ao mesmo tempo, interinfluentes.
Uma ilustração dessas interinfluências complexas entre economia e cultura, a qual serve simultaneamente de exemplo da atenção de Lélia a fenômenos interseccionais, é sua interpretação de dados dos anos 1960 e 1970 acerca da entrada maciça de mulheres no mercado de trabalho, especialmente em postos de nível médio. Com base em investigações estatísticas, ela mostra que aqueles dados se aplicavam largamente a mulheres brancas, não a mulheres negras. Notando a insuficiência de explicações econômicas, Lélia se deparava com o fato de que boa parte daquelas vagas ocupacionais de nível médio envolviam “relações com o público”, como nas profissões de recepcionista, secretária, caixa, professora de ensino fundamental etc. Na medida em que o recrutamento para tais posições mobilizava o requisito “boa aparência”, o qual funcionava como senha para “branquitude”, a barreira enfrentada pelas mulheres negras na estrutura ocupacional era decisivamente sustentada também por fatores culturais (casu quo, a estética racista por trás da demanda de “boa aparência”), não apenas econômicos.
Mesmo o entrecruzamento de análise socioeconômica e análise cultural deixa, ainda, o que Lélia descreve como um “resto” (Ibid.: 77) que pode ser perscrutado com a psicanálise. Tal “resto”, no entanto, não é, por assim dizer, “mero resto”. À melhor maneira das abordagens que a teoria social celebraria como “sintéticas” ou “multidimensionais” (Alexander, 1987), a psicanálise não é utilizada por Lélia como simples complemento analítico, como se lidasse tão-só com dimensões da psique individual que permanecessem impermeáveis ou recalcitrantes a influências societárias. A bem da verdade, Lélia toma a psique como atravessada por tais influências, como revelam suas concepções de “consciência” e “memória” (2020: 78): a primeira moldada por forças ideológicas; a segunda, um repositório inconsciente no qual se encontram conteúdos reprimidos cujo caráter pode ser simultaneamente psíquico e sociocultural. A autora também lança mão de ideias psicanalíticas como ferramentas de análise social, o que é ilustrado pelos seus tantos exemplos de “atos falhos” socioculturais que deixavam transparecer o racismo denegado no Brasil, exemplos que ela é capaz de apreender mediante uma sociologização da concepção lacaniana de linguagem.
2. Um pensamento interseccional que antecede a categoria “interseccionalidade”
Como parte de sua militância teórica e política no interior das esquerdas brasileiras, Lélia criticou defensores do “marxismo ortodoxo” (Ibid.: 32) por serem insuficientemente atentos às influências exercidas por classificações raciais na reprodução de condições desiguais de vida na sociedade brasileira. Mesmo quando aqueles marxistas ortodoxos reconheciam no racismo uma mistificação ideológica, cujo papel funcional seria o de dividir o “operariado”, eles tendiam a subestimar sua força, na medida em que supunham que a insistência militante sobre a solidariedade de classe do proletariado fosse suficiente, por si só, para dissolver os obstáculos a ela oriundos do racismo. Dando testemunho de sua mirada cosmopolita, Lélia menciona o (então vigente) regime sul-africano de apartheid para refutar aquela crença: “bastaria, para comprovar a fragilidade de tal posicionamento, o caso extremo de clivagem entre o operariado afrikcaaner [branco] e o operariado negro da África do Sul” (Ibid.: 32).
Em outro ensaio, a pensadora brasileira oferece uma elaboração mais geral do argumento sobre a especificidade do fator racial, cujas ilustrações empíricas poderiam ser multiplicadas:
“...a opressão racial nos faz constatar que mesmo os brancos sem propriedades dos meios de produção são beneficiários do seu exercício. Claro está que, enquanto o capitalista branco se beneficia diretamente da exploração ou superexploração do negro, a maioria dos brancos recebe seus dividendos do racismo, a partir de sua vantagem competitiva no preenchimento das posições que, na estrutura de classes, implicam as recompensas materiais e simbólicas mais desejadas. (...) se pessoas possuidoras dos mesmos recursos (origem de classe e educação, por exemplo), excetuando sua afiliação racial, entram no campo da competição, o resultado desta última será desfavorável aos não brancos” (Ibid.: 32).
Em seu trato substantivo da interseccionalidade, Lélia desenvolve uma abordagem que poderíamos chamar de “pluri” ou “multi-interseccional”. Vejamos o caso de sua tese de que, devido à exploração do trabalho racializado de empregadas domésticas, “a libertação da mulher branca tem sido feita às custas da exploração da mulher negra” (Ibid.: 43). Longe de se reduzir a “mera” denúncia da perpetuação do racismo na mentalidade de mulheres brancas, a tese baseia-se explicitamente em uma apreensão de outras intersecções: “A empregada doméstica [negra]...possibilitou e ainda possibilita a emancipação econômica e cultural da patroa dentro do sistema de dupla jornada” (Ibid.). A passagem grifada indica que a exploração de mulheres negras por mulheres brancas não se dava apenas pela presença do racismo entre as primeiras, mas era influenciada também pelo sexismo inerente ao “sistema de dupla jornada”. A despeito da entrada maciça das mulheres no mercado de trabalho, o machismo as mantinha como responsáveis pela maior parte das tarefas domésticas e de cuidado. Combater a exploração de empregadas domésticas negras por patroas brancas passava, nesse sentido, por um combate concomitante ao sexismo que eximia os homens da maior fatia daquelas tarefas.
Na articulação entre pensamento e práxis característica de sua obra, Lélia mobilizou sua sensibilidade interseccional não apenas para diagnosticar estruturas de dominação, mas também para delinear desafios e possibilidades estratégicas postos aos movimentos sociais de que ela fazia parte, como o movimento negro e o movimento feminista. Mediante sua atuação dupla, Lélia pautava tanto a questão de gênero no movimento negro quanto a questão racial no movimento feminista. Por um lado, quando observava o movimento negro em perspectiva dialética, a autora não se furtava a mencionar a ocorrência de manifestações do “machismo negro”, por vezes em articulação com “mecanismos compensatórios”, quando humilhações cotidianas advindas do racismo encontravam uma via de compensação emocional, dentre alguns homens negros, na prática de violência contra mulheres negras (Ibid.: 103).
Por outro lado, ela também notava que uma “experiência histórica comum” (Ibid.: 140) do racismo engendrou uma solidariedade entre homens e mulheres que foi crucial ao avanço do movimento negro. Nunca fugindo a uma análise de conjuntura, Lélia foi explícita em afirmar que o acento sobre a questão de gênero vinha encontrando muito mais receptividade no movimento negro do que aquela obtida, por seu turno, pela questão racial no movimento feminista: “por essas e outras é que se entende por que os grupos de mulheres negras se organizaram e se organizam a partir do movimento negro e não do movimento de mulheres” (Ibid.: 106). Não se tratava apenas do lembrete teórico de que as mulheres brancas precisavam atentar para a impossibilidade, dentre as mulheres negras, de uma luta feminista que não fosse também antirracista. O problema era mais urgente, já que a participação de mulheres brancas de classe média no movimento feminista, inclusive em posições de liderança, era frequentemente possibilitada, como vimos, pela exploração do trabalho de mulheres negras que atuavam como empregadas domésticas (Ibid.: 43).
3. Uma psicanálise da cultura
Dificilmente se pode encontrar um melhor exemplo de psicanálise da cultura no pensamento de Lélia do que em seu manejo das noções de “consciência” e “memória”, definidas de um modo que não apenas se aplica tanto ao individual quanto ao social, mas também já assinala suas complexas articulações:
“Como consciência a gente entende o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do esquecimento e até do saber. É por aí que o discurso ideológico se faz presente. Já a memória, a gente considera como o não saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita...Consciência exclui o que a memória inclui” (2020: 78)
A formulação “o não saber que conhece” captura bem sua visão psicanalítica da subjetividade – por exemplo, na figura dos traumas lembrados pela memória do inconsciente, mas desconhecidos da consciência, a não ser nas manifestações mais ou menos distorcidas da primeira na segunda em sonhos, sintomas ou atos falhos. Entretanto, quando Lélia utiliza tal visão em uma reflexão sobre racismo e sexismo na cultura brasileira, está nítido que ela mobiliza a psicanálise como instrumento de investigação sociocultural. Nessa investigação, as camadas da consciência e da memória existem não somente nas psiques individuais socializadas em uma cultura, mas também nas tradições histórico-culturais elas próprias. Tais tradições abrigam a camada mais superficial da consciência, moldada por ideologias (e.g., a democracia racial), assim como a camada mais profunda da memória, incluindo o que se sabe, mas não se sabe que se sabe ou, pelo menos, não se admite que se sabe (e.g., que o racismo existe no Brasil). Nesse sentido, assim como conteúdos inconscientes podem driblar defesas (super)egoicas, emergindo na consciência na forma de atos falhos, a mesma dinâmica pode ser encontrada na esfera sociocultural:
“...a memória tem suas astúcias, seu jogo de cintura; por isso, ela fala através das mancadas do discurso da consciência. O que a gente vai tentar é sacar esse jogo aí das duas, também chamado de dialética. E, no que se refere à gente, à crioulada, a gente saca que a consciência faz tudo pra nossa história ser esquecida, tirada de cena” (Ibid.: 79).
3.1.Epistemologia do ponto de vista?
A partir da frase em que Alain-Miller sustenta que a psicanálise lida com que a análise lógica da linguagem joga no “lixo”, Lélia dá outra torção sociológica à perspectiva psicanalítica e se propõe a analisar a sociedade brasileira desde o ponto de vista daqueles que ela joga para o lixo: “na medida em que nós negros estamos na lata de lixo da sociedade, pois assim determina a lógica da dominação, caberia uma indagação via psicanálise” (Ibid.: 77). Como é muito frequente na prosa de Lélia, sobretudo nos seus textos mais provocativos de intervenção, o que poderia parecer apenas força de expressão comunica ideias complexas. À parte o uso de uma alegoria próxima àquela do “quarto de despejo” empregada por Maria Carolina de Jesus (2014), a referência ao “lixo” funciona como uma versão do que depois se chamaria de “standpoint epistemology” (Harding, 1996). Trata-se da perspectiva, presente em um arco que vai do Lukács de História e consciência de classe ao feminismo negro de Patricia Hill Collins, segundo a qual a desvantagem social pode propiciar uma vantagem epistêmica.
Não se trata apenas do fato de que a experiência efetiva do racismo e do sexismo pelas mulheres negras não pode ser plenamente acessada a partir “de fora” – o que não significa que precisemos pensar em termos de “tudo ou nada” (i.e., de acessibilidade ou inacessibilidade absolutas), como sugerem alguns usos simplistas da noção de “lugar de fala”. A tese é mais ambiciosa: as diversas reflexões de Gonzalez sobre a mulher negra na sociedade brasileira são considerações críticas sobre a sociedade brasileira que partem da – mas não se circunscrevem à – condição da mulher negra. Em uma versão própria daquela “epistemologia do ponto de vista”, a exposição ao racismo e ao sexismo sofrida pela mulher negra não é somente o “privilégio” epistêmico de contar sua própria opressão e sofrimento, mas uma “oportunidade” epistêmica de apreender o racismo e o sexismo como pilares estruturais da própria sociedade brasileira, apreensão frequentemente obstaculizada para aqueles privilegiados por essa estrutura social. (As aspas, por óbvio, são demandadas pelo extraordinário montante de dor e sofrimento que acompanham uma posição que pode ser chamada de “vantajosa” na epistemologia e somente na epistemologia).
3.2 Dominação e resistência
Mediante uma psicanálise da cultura historicizada, Lélia também contribui para um contraponto dialético entre diferentes interpretações da sociedade brasileira. Um exemplo dessa dialetização está na questão das resistências que as populações negras de escravizados e ex-escravizados opuseram às suas opressões no Brasil. Quando trata do que fizeram e sofreram negros escravizados ao longo da história brasileira, Lélia substitui qualquer oposição binária entre os extremos de cumplicidade e da resistência, como as figuras respectivas de “Pai João” e de Zumbi, pela investigação de todo um espectro de resistências ativas e passivas, individuais e coletivas, conscientes e inconscientes praticadas por escravizados no Brasil.
Por exemplo, a autora destaca que a figura da mãe preta, a mucama responsável pelo exercício prático da função materna na domesticidade da casa-grande, foi injustamente assimilada àquela do “Pai João” como característica do “negro acomodado, que passivamente aceitou a escravidão e a ela correspondeu segundo a maneira cristã, oferecendo a outra face” (2020: 54; 87-88). Frequentemente colocada a serviço de uma “ideologia oficial...de integração e harmonia raciais”, tal retrato das pessoas escravizadas deixou de lado formas diversas pelas quais elas resistiram às consequências de sua condição. Um exemplo é o da africanização do idioma português pela atuação da mãe preta na socialização dos filhos de senhores e sinhás, fenômeno já notado por Gilberto Freyre e brilhantemente sintetizado por Lélia no conceito de “pretuguês” (Ibid.). Tal macroinfluência sociocultural, resultante de uma miríade de microinfluências cotidianas exercidas por múltiplas mulheres negras, representa não só uma agência dos escravizados (como Freyre já reconhecera), mas algo mais forte: uma resistência dos escravizados. Segundo Lélia, ao infundir o idioma dos escravizadores com influxos oriundos das culturas africanas das quais provinham elas e/ou seus ancestrais, as mucamas resistiam, “conscientemente ou não” (Ibid.), ao apagamento colonizador das heranças culturais advindas dos contextos dos quais elas e/ou seus ancestrais foram violentamente arrancados.
A obra de Lélia também apreende a complexa relação entre dominação e resistência de populações negras no Brasil não apenas mediante outras ilustrações culturais, como em seu retrato do candomblé e da umbanda como “memória histórica efetiva de um povo oprimido que não se vê representado na ‘história oficial’” (Ibid.: 54), mas também em argumentos que podem ser lidos, creio eu, como superação dialética de um debate entre os legados respectivos do Gilberto Freyre de Casa-grande & senzala ([1933] 2006: 366-574) e do Florestan Fernandes d’A integração do negro na sociedade de classes ([1963] 2008): de um lado, a recuperação freyriana da agência sócio-histórica de escravizados africanos e seus descendentes na formação da cultura brasileira, recuperação que cobra um preço analítico e político na forma de ênfases insuficientes sobre o grau de violência inerente à instituição escravista e sobre as múltiplas formas de resistência que os escravizados no Brasil exerceram contra a sua dominação (Moura, 2014); de outro, a análise florestânica do destino da população de ex-escravizados e seus descendentes após a abolição da escravatura, uma análise que, ao perseguir as condições sócio-históricas que obstaram a integração daquela população à “ordem social competitiva” no Brasil do século XX, descartou corretamente o “mito da ‘democracia racial’” (2008: 304 -326), mas o fez, em boa medida, substituindo um projeto de recuperação epistêmica da “agência dos dominados” por um acento sobre sua falta (Guimarães, 2008: 15).
A interpretação da obra de Lélia proposta aqui passará, portanto, pelos eixos analíticos de (1) uma teoria multidimensional e antirreducionista do social, (2) uma investigação de interseccionalidades tanto como estruturas de dominação quanto como desafios estratégicos ao ativismo político e (3) o programa de uma “psicanálise da cultura” aplicado especialmente ao exame do racismo na sociedade brasileira - programa que se desdobra, ele próprio, em (3.1) uma epistemologia na qual a “desvantagem social” da mulher negra pode ser convertida em “vantagem epistêmica” e, finalmente, em (3.2) uma concepção não maniqueísta da relação entre dominação e resistência na condição das populações negras no Brasil antes e depois da escravidão. Como parte de um repensar crítico dos cânones da “teoria social” e do “pensamento social brasileiro”, em compasso com a proposta do GT, o trabalho conclui, enfim, pela centralidade do pensamento de Lélia Gonzalez para ambos os domínios intelectuais.
Referências
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O 4º Seminário de Pensamento Social Brasileiro: intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, será realizado entre os dias 2 e 6 de junho de 2025, no formato híbrido. A programação presencial será realizada nas dependências do CCHN-Centro de Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito Santo, enquanto a programação virtual será transmitida pelas páginas oficiais do evento no YouTube e pela DoityPlay. Nesta edição contaremos com Conferência de Abertura, Grupos de Trabalho (modalidade virtual) e Conferência de Encerramento. Esperamos retomar o diálogo proposto nas edições anteriores do evento (1º SPSB, 2º SPSB e 3ºSPSB) que resultaram na publicação de livros oriundos das áreas temáticas presentes anteriormente (Coleção Pensamento Social Brasileiro-Volume 1 Volume 2 Volume 3 Volume 4), publicarmos novos livros oriundos desta edição do evento e que novas conexões possam ser criadas. Com esses sentimentos de alegria e reencontro, lhes desejamos boas-vindas!