O trabalho investiga a trajetória política e discursiva de Paulo Guedes no governo Bolsonaro (2018-2020), tomando-o como caso paradigmático da convergência entre neoliberalismo e conservadorismo no Brasil contemporâneo. A análise parte da recusa de explicações simplistas que tratam Guedes apenas como "fiador econômico" do governo, propondo, em seu lugar, a hipótese de que sua atuação e sua imagem pública constituíram uma síntese estratégica de racionalidades políticas distintas, mas convergentes, no processo de reconfiguração autoritária do Estado brasileiro. O problema de pesquisa que orienta o estudo é: como a figura pública e a atuação de Paulo Guedes expressaram a convergência entre a racionalidade neoliberal e o conservadorismo moral no governo Bolsonaro, e quais os mecanismos simbólicos e institucionais que viabilizaram essa síntese?
A hipótese central é que essa convergência não foi apenas tática ou conjuntural, mas estruturante, refletindo tanto transformações do capitalismo contemporâneo quanto tradições políticas específicas da formação social brasileira. Nesse sentido, a atuação de Guedes seria inteligível apenas se considerada no interior de processos históricos mais amplos de modernização conservadora, como interpretados por Florestan Fernandes (2005), Octávio Ianni (1984) e Gildo Marçal Brandão (2005), e de dinâmicas globais de rearticulação do neoliberalismo em sua fase autoritária, conforme analisado por Wendy Brown (2019; 2021), Nancy Fraser (2017) e Grégoire Chamayou (2020).
A fundamentação teórica do trabalho articula três eixos: (1) a teoria das representações sociais, especialmente nos termos formulados por Serge Moscovici (1976, 1984) e desenvolvidos por Sandra Jovchelovitch (2008); (2) a crítica à tecnocracia e sua função em regimes autoritários (O’Donnell, 1972; Waisman, 1989; Rojo, 2019); (3) a análise do neoliberalismo contemporâneo como racionalidade política autoritária (Brown, 2019; Fraser, 2017; Chamayou, 2020).
No primeiro eixo, a teoria das representações sociais é empregada para entender como a imagem de Guedes foi construída, circulada e estabilizada socialmente por meio de revistas e jornais que atribuíam a ele a imagem de competência técnica, associando-o a noções como "professor" e "guru". A ancoragem de Guedes como economista da Escola de Chicago serviu para estabilizar sua representação como "fiador" da racionalidade econômica no governo Bolsonaro, ao passo que seus insucessos empresariais e sua trajetória acadêmica pouco expressiva foram desobjetivados ou marginalizados do discurso midiático. Este processo de objetivação e naturalização da competência técnica, que traz consigo uma noção de neutralidade política, foi fundamental para sustentar a credibilidade de sua filiação a um neoliberalismo "puro", sem a articulação com questões conservadoras.
O segundo eixo teórico problematiza o papel dos tecnocratas em regimes autoritários contemporâneos. A partir das contribuições de O’Donnell (1972), Waisman (1989) e Rojo (2019), argumenta-se que a tecnocracia opera como um dispositivo de legitimação, travestindo projetos ideológicos radicais em medidas técnicas inevitáveis. No caso brasileiro, Guedes exerceu essa função ao construir uma narrativa na qual reformas regressivas — como a reforma da previdência — eram apresentadas como imperativos técnicos, ao mesmo tempo em que incorporava uma retórica moralizante para reforçar a aceitação popular dessas medidas.
O terceiro eixo analisa o neoliberalismo em sua fase autoritária. Dialogando com Brown (2019; 2021), Fraser (2017) e Chamayou (2020), demonstra-se que o neoliberalismo contemporâneo, diante de suas próprias crises internas, passou a incorporar elementos do conservadorismo moral, mobilizando afetos políticos como o medo, o ressentimento e a nostalgia de uma ordem social supostamente perdida. Esta transformação é particularmente visível na atuação de Guedes, cuja retórica passou a associar o desmonte do Estado social a uma "restauração dos valores" e à "ordem". Ressalta-se aqui o perído da análise discursiva abranger os anos de 2018, época da campanha de Bolsonara à Presidência, até março de 2020 (início da pandemia de Covid-19).
Metodologicamente, articula-se a análise de discurso e análise de representações sociais. O corpus empírico é composto por: a) reportagens e perfis jornalísticos publicados entre 2018 e 2019, com ênfase em veículos como Folha de São Paulo, BBC Brasil e The Intercept Brasil; b) colunas de opinião assinadas por Guedes no jornal O Globo (2005-2016) e na revista Época (2007-2012), totalizando 609 textos analisados; c) discursos e entrevistas públicas de Guedes entre 2018 e 2020, incluindo participações em seminários da FGV, entrevistas ao El País e intervenções em fóruns econômicos. A seleção do material levou em conta a recorrência de categorias discursivas ligadas à competência técnica ("superministro", "posto Ipiranga") e a introdução de questões morais conservadoras no discurso técnico, especialmente utilizadas para justificar as reformas ("corrupção dos costumes", "ordem", "trabalho honesto").
O percurso argumentativo inicia-se pela análise da construção da imagem pública de Guedes como "fiador econômico", a partir dos mecanismos de ancoragem e objetivação, passando a aprofundá-lo por meio do exame da trajetória acadêmica e empresarial de Guedes, demonstrando a fragilidade de sua credencial técnica efetiva e a função simbólica dessa credencial na construção de sua autoridade. Após, tem-se a análise de discursos públicos e colunas de opinião, evidenciando o processo de hibridização discursiva que articulou neoliberalismo econômico e conservadorismo moral para que seja possível, ao menos em linhas gerais, interpretar as implicações dessa convergência para a reconfiguração institucional do Estado brasileiro e para a crise da democracia liberal.
A análise do material empírico permitiu identificar três fases principais na atuação discursiva de Guedes entre 2016 a 2020. A primeira será chamada de fase de construção técnica (2005-2016), em que se tem os seus discursos como ponto de partida para a compreensão das ideologias que faz uso. Durante sua atuação como colunista, Guedes enfatizou a crítica ao Estado social, a defesa da desregulamentação econômica e a idealização de uma "Grande Sociedade Aberta". Seu discurso, nesse período, ainda não incorporava de forma sistemática elementos do conservadorismo moral. Já na segunda, a fase de convergência discursiva (2018-2019), iniciada a partir da associação com Bolsonaro, observa-se a crescente incorporação de pautas morais em seu discurso, como a denúncia da "ruptura dos costumes" e a defesa da "classe média esquecida", alinhando sua retórica às demandas simbólicas da base bolsonarista. Por fim, anota-se a fase de consolidação autoritária (2019-2020), em que, durante a gestão como superministro, Guedes passa a naturalizar a precarização social como imperativo técnico e moral, utilizando metáforas como "esperar a jaca cair" para justificar a concentração de renda e a retirada de direitos sociais. Essas fases revelam que a atuação discursiva de Guedes foi progressivamente adaptada para sustentar a síntese entre desregulamentação econômica e restauração moral autoritária.
Os resultados da análise indicam que Guedes desempenhou um papel duplo: (i) de legitimação técnica de reformas regressivas junto às elites econômicas e organismos internacionais; e (ii) de mobilização simbólica junto às bases conservadoras, através da associação entre ajuste fiscal e restauração da moralidade. A contribuição principal do trabalho é demonstrar que a síntese neoliberal-conservadora no governo Bolsonaro não foi contingente, mas constituiu uma estratégia de recomposição hegemônica diante da crise da democracia liberal. A atuação de Guedes exemplifica essa estratégia, articulando uma tecnocracia moralizante que sustenta reformas regressivas enquanto enfraquece os mecanismos democráticos de controle.
Além disso, o estudo oferece uma leitura crítica da dinâmica da nova direita brasileira, mostrando como a articulação entre desregulamentação econômica e conservadorismo moral se deu não apenas no plano institucional, mas também no nível das representações sociais e dos afetos políticos mobilizados. A pesquisa também contribui metodologicamente ao combinar análise de representações sociais e análise de discurso em uma perspectiva crítica, capaz de articular dimensões simbólicas, institucionais e históricas da atuação política.
Em última instância, o trabalho reforça a tese de que o neoliberalismo contemporâneo, em sua fase autoritária, opera não apenas pela destruição de direitos, mas pela construção de novas legitimidades simbólicas que naturalizam a precarização e a erosão democrática. A figura de Paulo Guedes, nesse sentido, representa uma chave interpretativa fundamental para compreender a gramática política da nova direita brasileira.
O 4º Seminário de Pensamento Social Brasileiro: intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, será realizado entre os dias 2 e 6 de junho de 2025, no formato híbrido. A programação presencial será realizada nas dependências do CCHN-Centro de Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito Santo, enquanto a programação virtual será transmitida pelas páginas oficiais do evento no YouTube e pela DoityPlay. Nesta edição contaremos com Conferência de Abertura, Grupos de Trabalho (modalidade virtual) e Conferência de Encerramento. Esperamos retomar o diálogo proposto nas edições anteriores do evento (1º SPSB, 2º SPSB e 3ºSPSB) que resultaram na publicação de livros oriundos das áreas temáticas presentes anteriormente (Coleção Pensamento Social Brasileiro-Volume 1 Volume 2 Volume 3 Volume 4), publicarmos novos livros oriundos desta edição do evento e que novas conexões possam ser criadas. Com esses sentimentos de alegria e reencontro, lhes desejamos boas-vindas!