Este trabalho analisa a persistência da celebração do bandeirantismo paulista e da reprodução do mito da democracia racial na coleção infantil e pedagógica "Saiba Mais! Com a Turma da Mônica", produzida pela Maurício de Sousa Produções e publicada pela Panini Comics. Observa-se que, mesmo em reedições recentes, a coleção reitera representações históricas que exaltam os bandeirantes como figuras heróicas e civilizatórias, sequer problematizando as práticas de violência, escravização indígena e destruição cultural que caracterizaram suas expedições. A escolha por essas representações não pode ser considerada inocente ou meramente estética, mesmo diante das frequentes declarações de Maurício de Sousa de que suas obras buscam apenas entreter ou educar de forma leve. Na prática, várias edições da coleção operam ativamente na constituição de uma memória pública que naturaliza os processos de dominação colonial, estetizando os sertanistas paulistas como agentes do progresso e da civilização. Vários números da "Saiba Mais! Com a Turma da Mônica" colaboram, em maior ou menor grau, para solidificar uma leitura da história brasileira em que as práticas de violência sistemática contra indígenas e africanos escravizados são omitidas, minimizadas ou transfiguradas em gestos heroicos de fundação nacional por paulistas. A linguagem visual e textual empregada nesses quadrinhos, ao suavizar a representação dos conflitos, dilui o caráter histórico da imposição de regimes de trabalho forçado e da destruição de culturas autóctones, transformando a conquista em desbravamento e a dominação em aventura épica. Tal dinâmica é perceptível, sobretudo, nas edições "Descobrimento do Brasil" (nº 7, 2008), e "Índios" (nº 19, 2009), nas quais a presença indígena é romantizada ou relegada a um papel decorativo diante da narrativa glorificadora da expansão colonial paulista(na). Como são edições que continuam a ser disponibilizadas no mercado editorial, sua capilaridade e capacidade de reprodução simbólica permanece ativa no presente. Sem qualquer esforço de revisão crítica à luz dos debates historiográficos mais recentes, essas reedições renovam a circulação de um imaginário anacrônico que reforça interpretações coloniais da história do Brasil.
A exaltação do bandeirantismo, tal como veiculada na coleção "Saiba Mais! Com a Turma da Mônica", integra-se a um projeto mais amplo de invenção da paulistanidade, compreendida não como manifestação espontânea de identidades locais, mas como construção intencional das elites econômicas e intelectuais entre o final do século XIX e o início do XX, conforme pontuado por Luís Fernando Cerri (1998), Ricardo Luiz de Souza (2013) e Francisco Tavares de Moraes (2020). Trata-se de uma narrativa iniciada ainda no século XIX, mas que encontrou um momento decisivo de reconfiguração em 1932, quando, diante da perda do controle político nacional após a derrota na rebelião paulista de 1932, as elites locais, em busca de reposicionar sua centralidade no projeto nacional, intensificaram a elaboração simbólica de uma identidade própria, calcada também no mito do bandeirante como figura civilizatória e fundadora. Nesse projeto, a história paulista foi elevada ficcionalmente à condição de matriz fundacional e civilizatória do Brasil moderno, enquanto outras experiências regionais foram secundarizadas ou invisibilizadas. Transformados em ícones de trabalho, racionalidade e progresso, os bandeirantes passaram a representar não apenas o orgulho paulista, mas a própria origem da nação brasileira em discursos políticos, educacionais e culturais. Essa operação simbólica inventada foi tão bem-sucedida que reverberou para além do campo político, contaminando discursos historiográficos e acadêmicos, inclusive na área dos estudos sobre histórias em quadrinhos (RODRIGUES, 2021). A recorrente canonização de figuras associadas a São Paulo, como o ítalo-brasileiro Angelo Agostini - amplamente celebrado como "pai" dos quadrinhos nacionais, sobretudo por núcleos como a Universidade de São Paulo (USP), através de figuras que inclusive se consideram os verdadeiros pioneiros da pesquisa sobre histórias em quadrinhos no Brasil -, exemplifica como a lógica bandeirantista, de fundação e protagonismo originário, perpassa diferentes esferas de produção de memória.
Nos quadrinhos da Maurício de Sousa Produções, essa tradição inventada paulistana se atualiza: os bandeirantes são estetizados como desbravadores, benevolentes, visionários, à frente do seu tempo, inseridos em uma narrativa que oculta as estruturas coloniais. A visualidade empregada, com traços suaves e cenas de cooperação harmônica entre exploradores e populações locais, transforma, como apresentaremos no trabalho, eventos brutais em momentos de camaradagem e bravura, evocando uma estética de aventura que mascara a brutalidade da colonização interna. Esse enquadramento encontra paralelo direto no Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, inaugurado em 1954, cuja monumentalidade exalta o esforço bandeirante sem aludir à escravização indígena. Igualmente, dialoga com as obras de Afonso d’Escragnolle Taunay, especialmente nos 11 tomos de "História Geral das Bandeiras Paulistas" (1924-1950), onde o passado em torno dos sertanistas de São Paulo é romantizado como epopeia fundacional, e com o livro "O Gigante de Botas" (1941), de Ofélia e Narbal Fontes, destinado ao público infantojuvenil e adaptado posteriormente em quadrinhos, na "Edição Maravilhosa" nº 126, publicada em junho de 1956 pela Editora Brasil-América (Ebal), sob o título "Anhanguera, o Gigante de Botas", com ilustrações de Nilo Cardoso. Não se pode esquecer ainda Alfredo Ellis Júnior, cuja obra "Raça de gigantes" (1926) enaltece os bandeirantes e propõe uma visão eugênica da mestiçagem paulista, influenciando a percepção de liderança racial, vigor civilizatório e protagonismo nacional.
Ao mesmo tempo, a coleção incorpora o mito da democracia racial, representando relações étnico-raciais como pacíficas, harmoniosas e isentas de conflito. Essa fantasia histórica, já amplamente criticada por autores como Florestan Fernandes (1978) e Kabengele Munanga (2004) nega a existência de hierarquias raciais e apaga a violência estrutural da colonização e da escravização. A reprodução do mito da democracia racial nos quadrinhos de Maurício de Sousa - algo bem comum em sua produção como um todo - é feita por meio de personagens de diversas origens étnicas que coexistem sem tensões, em narrativas que jamais explicitam as desigualdades históricas nem os processos de exclusão. Nesses quadrinhos, a suposta convivência amigável entre portugueses, indígenas e, implicitamente, outros povos, contribui para reforçar a narrativa de que a diversidade brasileira seria fruto de uma fusão étnica sem antagonismos. A violência das frentes de conquista, o extermínio de povos indígenas inteiros, as campanhas de escravização, a imposição de línguas e costumes europeus sobre culturas indígenas e africanas, tudo isso é suprimido em favor de uma visão idílica em que os encontros interétnicos se dão de forma espontânea e pacífica. A mestiçagem, apresentada como sinônimo de harmonia, é dissociada das relações de poder e das estruturas coloniais que a determinaram.
Considerando que a coleção "Saiba Mais! Com a Turma da Mônica" foi concebida com uma perspectiva declaradamente pedagógica, voltada à formação de leitores mais jovens em diálogo com conteúdos curriculares escolares, a reprodução desses mitos e silenciamentos torna-se ainda mais problemática. Ao se apresentar como instrumento de educação, a coleção adquire um estatuto de legitimidade que reforça sua capacidade de modelar precocemente as percepções históricas das crianças. Essa pedagogia da memória, ao invés de estimular uma visão crítica e complexa do passado brasileiro, consolida interpretações que naturalizam hierarquias, mascaram violências estruturais e reforçam uma narrativa única e hegemônica da formação nacional. A naturalização do bandeirantismo e da democracia racial como pilares da identidade brasileira, quando disseminada em produtos culturais destinados ao público infantil sob o discurso educacional, atua na sedimentação de subjetividades que reproduzem, sem questionamento, distorções e incorreções históricas. A função educativa da coleção, portanto, não é neutra nem desinteressada: é ideológica. Ela é parte ativa na disputa pela memória e pela definição legítima dos sentidos da história nacional.
Com esta análise, espera-se contribuir para o desvelamento dos processos de construção e legitimação das identidades nacionais por meio das histórias em quadrinhos. A atualização da memória bandeirantista e colonial, mesmo em meios lúdicos, revela o papel ativo de produtores de quadrinhos na reprodução de identidades hegemônicas, mostrando que o uso de temas tradicionais nas produções de Maurício de Sousa inscreve-se em disputas simbólicas profundas sobre história, memória e projetos de nação - disputas em que uma experiência regional é projetada como universal, mascarando suas particularidades sob a aparência de uma narrativa nacional consensual. Para fundamentar nossa análise recorre-se a uma abordagem historiográfica crítica, ancorada em debates sobre memória, identidade e usos do passado. Este texto atua dentro de uma linha acadêmica consolidada que analisa a invenção de tradições (no sentido de Hobsbawm), a produção hegemônica de memória (Pierre Nora, Jacques Le Goff) e a colonialidade do poder (Aníbal Quijano), além de estudos sobre a paulistanidade como ideologia. Em diálogo com essas referências, examina-se de que modo as representações dos bandeirantes e da mestiçagem harmoniosa, ao serem transpostas para a linguagem dos quadrinhos infantis, atualizam mitologias políticas que favorecem a naturalização de hierarquias raciais, étnicas e regionais. Assim, compreende-se "Saiba Mais! Com a Turma da Mônica" não como mera reprodução passiva de discursos pretéritos, mas como um agente ativo na (re)invenção de um passado compatível com projetos ideológicos hegemônicos e locais.