A construção de estereótipos sobre os povos originários do Brasil

  • Autor
  • Maria Geovanna Machado
  • Resumo
  • O modo de vida e costumes que compõem as diferentes culturas, dos diversos povos originários do Brasil, são alvos de olhares preconceituosos e de interpretações que desvalidam costumes, crenças e reivindicações. De acordo com o autor e ativista indígena Daniel Munduruku,

     

    muito do que a sociedade acredita saber sobre os povos indígenas é o que os europeus deixaram escrito. Claro que estes textos abordam uma visão eurocêntrica, ou seja, a partir dos princípios e visão – por vezes religiosa – dos europeus. Nessa visão, os indígenas brasileiros eram selvagens, atrasados, desorganizados, canibais e preguiçosos. Enfim, eram povos perdidos no tempo. Nem humanos eram. (MUNDURUKU, 2010, p. 95).

     

    Com mais 500 anos desde o primeiro contato entre indígenas e invasores europeus, a visão que ainda circula tanto em ambientes educacionais quanto do senso comum é a do homem branco, despreocupado com a valorização da diversidade e empenhado no extermínio literal e epistêmico dos povos originários. 

    O trabalho intitulado “A construção de estereótipos sobre os povos originários do Brasil” parte da pesquisa em andamento intitulada “A literatura de autoria indígena: respostas aos estereótipos coloniais e o impacto no processo de autodeterminação dos povos originários”, e tem como objetivo analisar a forma como os indígenas são representados nas principais obras literárias e documentos oficiais que colaboram com a visão dos colonizadores europeus, a fim de identificar estereótipos que circulam até os dias de hoje.

    O primeiro documento analisado foi a Carta a El Rei D. Manuel, escrita por Pêro Vaz de Caminha, no ano de 1500. Nela encontramos uma espécie de propaganda do paraíso intocado. Caminha descreve as mulheres indígenas com dedicação no que se refere a nudez, dizendo: “Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonhavam.” (CAMINHA, 1500, P. 4). Em outro momento afirma que essas mulheres causariam vergonha às mulheres europeias devido à beleza de seus corpos. Caminha descreve corpos nus, inocentes e, aos seus olhos, disponíveis. 

    Sobre os homens, descreve corpos fortes, porém sem intuito de guerrear pela defesa de seu território, dispostos a entregar suas riquezas e aptos a serem catequizados. A inocência descrita sugere a possibilidade e necessidade de gerenciamento desse povo “selvagem” pelos europeus “civilizados”. Tudo isso é direcionado ao monarca como um convite de dominação, física e cultural do “paraíso selvagem”, que tem tudo a oferecer e nada a pedir em troca. Os estereótipos encontrados nesse documento se direcionam a uma idealização do indígena como um ser inocente, submisso, sem ambições materiais e à erotização dos corpos indígenas, principalmente das mulheres.

    O segundo documento analisado foi o livro “História da província de Santa Cruz” escrito por Pero de Magalhães Gandavo, no ano de 1576, sendo o primeiro livro publicado sobre o Brasil. Ele tinha como objetivo descrever e exaltar as riquezas do país a fim de estimular a vinda de portugueses para nova colônia. Tal objetivo é assumido pelo autor no próprio prólogo ao leitor ao ressaltar a importância de que o povo português tenha notícia de como é boa essa nova terra e “nam duvidem escolhe-la para seu emparo: porque a mesma terra he tal, e tam favoravel aos que a vão buscar, que a todos agazalha e convida com remedio por pobres e desemparados que sejão.” (GANDAVO, 1980, P. 76).

    O autor divide o livro em 14 capítulos nos quais retrata, em tom de propaganda, a fauna, flora e o modo de vida dos portugueses que já habitam tais terras. No entanto, dos 14 capítulos 3 são dedicados exclusivamente a descrever os povos indígenas, que chama de índios, e seus costumes, bem como a guerra e o ritual antropofágico. O primeiro capítulo dedicado à descrição dos indígenas é o capítulo X intitulado “Do gentio que ha nesta provincia, da condição e costumes delle, e de como se governam na paz”, nele o autor trata de aspectos físicos desses povos, que são retratados como “de côr baça, e cabelo corredio; tem o rosto amassado, e algumas feições delle á maneira de Chins” (GANDAVO, 1980, P.122) e devido aos adornos que perfuram a pele o autor os considera “feios e disformes” (GANDAVO, 1980, P. 126).

    O autor assume a existência de diversas nações indígenas, mas afirma que não possuem diferenças significativas entre seus costumes e crenças, o que revela um conhecimento superficial sobre tais povos que os generaliza e reduz suas particularidades. Além da descrição física, o autor também descreve a moral e os costumes indígenas de forma muito negativa, dizendo “sam desagradecidos em gran maneira, e mui deshumanos e crueis, inclinados a pelejar, e vingativos por extremo. Vivem todos mui descançados sem terem outros pensamentos senam de comer, beber, e matar gente” (GANDAVO, 1980, P. 122), em outra passagem o autor também os descreve como “deshonestos e dados á sensualidade, e assi se entregam aos vicios como se nelles nam houvera razão de homens” (GANDAVO, 1980, P.122).

    Todas as representações do autor se direcionam a formulação de uma imagem do indígena que é mau, irracional, selvagem, promíscuo e incivilizado. Tal incivilidade é defendida principalmente quando o autor trata da(s) língua(s) indígena(s), dizendo “carece de três letras, convem a saber, nam se acha nella F, nem L, nem R, cousa digna despanto porque assi nam têm Fé, nem Lei, nem Rei, e desta maneira vivem desordenadamente sem terem além disto conta, nem peso, nem medido” (GANDAVO, 1980, P. 124). Tal passagem ressalta uma suposta desordem e irracionalidade nos modos de vida indígenas justificados pela falta de 3 pilares fundamentais das ditas civilizações europeias do período colonial, colocando as organizações indígenas em um status inferior.

    Assim como Caminha, Gandavo também destaca um desapego dos indígenas para com o ouro, prata e pedras preciosas, e fala sobre a ociosidade em que vivem dizendo que 

     

    a vida que buscam e grangearia de que todos vivem, he á custa de pouco trabalho, e muito mais descançada que a nossa: porque nam possuem nenhuma fazenda, nem procuram adquiri-la como os outros homens, e assi vivem livres de toda a cobiça e desejo desordenado de riquezas, de que as outras nações nam carecem; e tanto que ouro nem prata nem pedras preciosas têm entre elles nenhuma valia, nem pera seu uso têm necessidade de nenhuma cousa destas, nem doutras semelhantes. (GANDAVO, 1980, P. 128). 

     

    Com certeza é uma forma muito assertiva de se descrever a relação de um povo para com seu território, tendo como fim o incentivo para a vinda de europeus.

    No capítulo XI intitulado “Das guerras que tem uns com outros e a maneira com que se hão nellas” o autor reafirma características descritas anteriormente e conta ao leitor que “Estes Indios têm sempre grandes guerras huns contra outros e assi nunca se acha nelles paz nem será possivel, segundo são vingativos e odiosos.” (GANDAVO, 1980, P. 130). Ainda nesse capítulo o autor afirma que a única maneira de remediar tal conduta é através da doutrina cristã.

    No XII capítulo intitulado “Da morte que dão aos cativos e crueldade que usam com elles”, novamente o autor descreve os indígenas como crueis ao tratar com pessoas que não fazem parte de seus grupos, ou nas palavras do autor “rebanho” (GANDAVO, 1980, P.130). Além da crueldade ao matar seus inimigos, o autor retrata a prática antropofágica dizendo “lhe comem todos a carne usando nesta parte de cruezas tam diabolicas, que ainda nellas excedem aos brutos animaes que nam tem uso de razam nem foram nascidos pera obrar clemencia.” (GANDAVO, 1980, P.130) o que deixa exposto mais uma vez a noção de incivilidade, animalidade e maldade com que reconhece os indígenas.

    O terceiro documento analisado foi o Diretório dos Índios, uma lei redigida em 1755 por D. José I e implementada pelo Marquês de Pombal no ano de 1758. Tal documento foi criado em um contexto de disputas territoriais entre Espanha e Portugal, especificamente sobre a Colônia de Sacramento e o território dos Sete Povos das Missões. O território dos Sete Povos das Missões eram aldeamentos habitados originalmente por indígenas Guaranis e controlados por Jesuítas espanhóis. Pombal, um homem guiado por ideais iluministas, repudiava a influência jesuítica na educação da colônia bem como sua influência cristã sobre os indígenas, por isso desejava a retirada dos espanhóis de Sete Povos. Todo esse cenário levou a Guerra Guaranítica, que trataremos mais adiante, e à formulação do diretório dos índios.

    Tal documento definia os processos de incorporação dos indígenas à sociedade colonial e afirmava a inaptidão desses de se autogerir. Além disso, o documento criava para cada povoação postos de diretoria que deveriam ser administrados pelos governadores. Tais definições são expostas logo no primeiro parágrafo do documento:

     

    1 Sendo Sua Majestade servido pelo Alvará com força de Lei de 7 de Junho de 1755, abolir a administração Temporal, que os Regulares exercitavam nos Índios das Aldeias deste Estado; mandando-as governar pelos seus respectivos Principais, como estes pela lastimosa rusticidade, e ignorância, com que até agora foram educados, não tenham a necessária aptidão, que se requer para o Governo, sem que haja quem os possa dirigir, propondo-lhes não só os meios da civilidade, mas da conveniência, e persuadindo-lhes os próprios ditames da racionalidade, de que viviam privados, para que o referido Alvará tenha a sua devida execução, e se verifiquem as Reais, e piíssimas intenções do dito Senhor, haverá em cada uma das sobreditas Povoações, em quanto os Índios não tiverem capacidade para se governarem, um Diretor, que nomeará o Governador, e Capitão General do Estado, o qual deve ser dotado de bons costumes, zelo, prudência, verdade, ciência da língua, e de todos os mais requisitos necessários para poder dirigir com acerto os referidos índios debaixo das ordens, e determinações seguintes, que inviolavelmente se observarão enquanto Sua Majestade o houver assim por bem, e não mandar o contrário. (MELLO, 1758, P. 1).

     

    Nesse trecho podemos observar a contraposição dos defeitos atribuídos aos indígenas, como “rusticidade” e “ignorância”, com a civilidade e racionalidade que os diretores que passariam a gerir estes povos deveriam ter, por óbvio sendo homens não indígenas. Tal contraposição coloca os indígenas em um lugar submisso, justificando a dominação.

    Outro ponto importante desse documento que nos ajuda a compreender a história da discriminação dos povos indígenas é a proibição da utilização dos idiomas nativos a fim de acelerar a dominação, tal determinação é introduzida com a seguinte premissa:

     

    6 Sempre foi máxima inalteravelmente praticada em todas as Nações, que conquistaram novos Domínios, introduzir logo nos povos conquistados o seu próprio idioma, por ser indisputável, que este é um dos meios mais eficazes para desterrar dos Povos rústicos a barbaridade dos seus antigos costumes (MELLO, 1758, P. 3).

     

    Em seguida é afirmada com as seguintes palavras:

     

    será um dos principais cuidados dos Diretores, estabelecer nas suas respectivas Povoações o uso da Língua Portuguesa, não consentindo por modo algum, que os Meninos, e as Meninas, que pertencerem às Escolas, e todos aqueles Índios, que forem capazes de instrução nes ta matéria, usem da língua própria das suas Nações, ou da chamada geral; mas unicamente da Portuguesa, na forma, que Sua Majestade tem recomendado em repetidas ordens, que até agora se não observaram com total ruína espiritual, e Temporal do Estado. (MELLO, 1758, P. 4).


     

    O documento também trata da necessidade de introduzir vestimentas “descentes”, “desterrando deles a desnudez, que sendo efeito não da virtude, mas da rusticidade, tem reduzido a toda esta corporação de gente à mais lamentável miséria” (MELLO, 1758, P. 7).

    Além dos pontos já tratados, o documento traz inúmeras determinações que interferem diretamente na forma de organização social e cultural dos povos indígenas, como a posse e a forma como devem cultivar os territórios habitados, a distribuição populacional em cada território, as formas de relacionamento aceitáveis entre os diferentes povos, a regulação de casamentos entre brancos e indígenas, entre outras que merecem estudo e atenção particular, mas tratando das determinações e representações textuais que contribuem para a fixação de estereótipos sobre os povos originários, ainda é preciso tratar de um tema do documento, a ociosidade.

    De acordo com o documento “a Ociosidade, vício quase inseparável, e congênito a todas as Nações incultas” (MELLO, 1758, P.9) é o fator determinante da miséria dos povos originários, que, por conta de concepções como essas, são tidos como preguiçosos. Tais considerações não levam em consideração as diferentes possibilidades de trabalho existentes em diferentes sociedades, e também não considera o dano que a colonização causa no modo de vida desses povos.

    O documento seguinte é escrito a partir do mesmo contexto histórico em que foi elaborado o documento anterior, trata-se do livro “O Uraguai” escrito por Basílio da Gama no ano de 1769. Antes de entrar nos detalhes do livro em si, é importante ter em vista a biografia do autor que possui forte ligação com o Marquês de Pombal, responsável pela efetivação do “diretório dos índios". A partir do prefácio do livro, republicado pela fundação Darcy Ribeiro, elaborado por Rodrigo Carvalho da Silveira, é observado o histórico criminal do autor, que foi preso em Lisboa no ano de 1768 por suspeita de jesuitismo, a partir deste suposto delito Basílio seria exilado em Angola. No entanto, como último recurso, o autor escreve um poema dedicado à filha de Marquês de Pombal, e dessa forma conquista a revogação de sua pena.

    Incentivado pelo Marquês, Basílio escreve “O Uraguai” e o dedica ao “Conde de Oeiras”, título dado a Pombal por D. José I, e descreve o contexto das disputas territoriais entre Espanha e Portugal que levaram a Guerra Guaranítica, tendo como protagonistas e heróis os militares portugueses e alguns personagens indígenas e dando o papel de vilão aos padres jesuítas espanhóis e aos indígenas enquanto lutavam ao lado dos padres.

    Direcionando maior atenção a forma como o autor descreve os povos indígenas, logo no primeiro canto nos deparamos com a seguinte descrição dos habitantes de Sete Povos:

     

    Sete povos, que os bárbaros habitam Naquela oriental vasta campina 

    Que o fértil Uraguai discorre e banha

    Quem podia esperar que uns índios rudes, 

    Sem disciplina, sem valor, sem armas, 

    Se atravessassem no caminho aos nossos, 

    E que lhes disputassem o terreno!  (GAMA, 1769, P.6).

     

    No decorrer de todo o livro encontramos diversas formas de representações negativas e rasas dos indígenas e de seus costumes, como, por exemplo a seguinte passagem: 

     

    Traz consigo os salvages da montanha,

    Que comem os seus mortos; nem consentem

    Que jamais lhes esconda a dura terra

    No seu avaro seio o frio corpo

    Do doce pai, ou suspirado amigo. (GAMA, 1769, P.25).

     

    Existe apenas um momento da história contada em versos que o autor “elogia” um personagem indígena e isso se dá após a morte de Cocambo, envenenado pelo padre jesuíta Balda, como veremos na seguinte passagem:

     

    Jaz o ilustre Cacambo – entre os gentios

    Único que na paz e em dura guerra

    De virtude e valor deu claro exemplo. (GAMA, 1769, P.20).

     

    Diante da dívida moral do autor para com Marquês de Pombal é possível afirmar que o livro em questão concorda com todas as imposições sobre os povos indígenas fixadas pelo diretório, e a partir da forma como o indígena é representado por Basílio da Gama é reafirmada no imaginário popular a imagem de um povo rude, sem valor, indisciplinado, selvagem e, ao mesmo tempo, inocente por serem enganados pelos jesuítas, e que por isso não tem capacidade de se autogovernar.

    Os documentos analisados até o momento situavam-se no período colonial, agora passaremos a analisar obras literárias que correspondem ao contexto do Brasil Império, tendo como representante o autor indianista José de Alencar. Antes de tratar especificamente das obras mais importantes do autor para este trabalho, é importante esclarecer de antemão qual era o propósito da literatura de Alencar. De acordo com o professor Alfredo Bosi,

     

    O primeiro quartel do século XIX foi, em toda a América Latina, um tempo de ruptura. O corte nação/colônia, novo/antigo exigia, na moldagem das identidades, a articulação de um eixo: de um lado, o pólo brasileiro, que enfim levantava a cabeça e dizia o seu nome; de outro, o pólo português, que resistia à perda do seu melhor quinhão. (BOSI, 1992, P. 177).

     

    É nesse contexto que José de Alencar escreve, e é a partir do estilo romântico que o autor desenvolve uma forma propriamente brasileira de retratar as origens nacionais. O que na Europa foi feito a partir de figuras e cenas medievais, no Brasil teve como inspiração o mundo indígena.

    Apesar de o contexto ser de rompimento entre colônia e metrópole, o indígena de Alencar não segue a mesma linha, o que é retratado na verdade é uma relação de devoção entre personagens indígenas e europeus, como refletiremos a seguir.

    Tendo como foco duas das principais obras indianistas de Alencar, “O guarani” (1857) e “Iracema” (1865), nos deparamos com histórias em que a figura do indígena, enquanto protagonista, é retratada de forma submissa aos protagonistas brancos. Em “O Guarani” o autor retrata o indígena através de Peri, um jovem forte, ágil e valente que dedica grande devoção à Cecília, filha de um fidalgo português. A relação entre Peri e Cecília é retratada de forma que Peri, antes chefe de seu povo, abre mão de seu posto e de suas honras para viver junto à família de Cecília e servir voluntariamente como um escravo das vontades e da felicidade da menina. Tal característica de Peri é reforçada em inúmeras passagens do livro como em um trecho em que após um desentendimento entre os protagonistas Peri canta os seguintes versos:

     

    Antes de ver-te, senhora, 

    Fui rei; 

    Serei teu escravo agora. 

    Por ti deixo meu alcáçar 

    Fiel;

    Meus paços d’ouro e de nácar. 

    Por ti deixo o paraíso, 

    Meu céu

    É teu mimoso sorriso. (ALENCAR, 1996, P. 135).

     

    Peri é descrito com nobreza e caráter de “homem civilizado”, diferentemente do povo Aimoré, indígenas que entram em conflito com a família de Cecília e, consequentemente, com Peri, estes são descritos como sendo selvagens, carniceiros, canibais, diabólicos e sedentos de vingança. No entanto, mesmo Peri sendo protagonista, ainda é referenciado a partir de descrições que denotam inferioridade na trama, como a palavra selvagem que sempre reaparece em suas descrições físicas, contracenando com o seu espírito civilizado de cavaleiro português.

    Por sua vez, a obra “Iracema” retrata a figura do indígena a partir da protagonista Iracema cujo nome é um anagrama da palavra “América”. Com essa informação, a função do romance como compositor de mitos de formação das nações fica bem evidente, e no desenrolar da trama fica nítida qual é a posição do indígena na nação almejado por Alencar. 

    Iracema, “a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira.” (ALENCAR, 1991, P. 7), é descrita de forma erótica e sensual. Pertencente ao povo tabajara, a jovem era consagrada a Tupã, por isso mantinha um voto de castidade, no entanto, assim como Peri, coloca seu par romântico acima de seu povo, quebrando seu voto e se rendendo ao cavalheiro português. 

    A rendição amorosa de Iracema à Martim simboliza mais do que um simples ato sexual, simboliza um ideal de submissão física e cultural de todos os povos originários aos colonizadores europeus. Nessa obra também encontramos descrições dos indígenas como sendo selvagens, mas diferentemente de “O Guarani” o fim destinado à protagonista é trágico, pois após dar à luz a Moacir, seu filho e filho de Martim, Iracema morre. 

    De acordo com Alfredo Bosi, na mitologia romântica de José de Alencar “A nobreza dos fracos só se conquista pelo sacrifício de suas vidas.” (BOSI, 1992, P. 179), em outras palavras, os protagonistas indígenas de Alencar só alcançam o elogio da civilidade e o respeito enquanto se sacrificam em favor da vida dos pares brancos.

    Tanto em “O Guarani” quanto em “Iracema” o autor tenta dar conta de resolver literariamente conflitos reais entre Indígenas e colonizadores por meio da união sexual desses grupos, e dessa forma, por meio da literatura ficcional oferece sua interpretação do processo colonial e propõe uma identidade nacional baseada na submissão dos indígenas.

     

    Referências:

    ALENCAR, José. O Guarani. São Paulo: Ática, 1996.

    _______. Iracema.São Paulo: Ática, 1991.

    ALMEIDA, R. H. de. O Diretório dos índios: um projeto de “civilização” no Brasil do Século XVIII. Brasília: Editora da Universidade de Brasília. 1997.

    BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

    CAMINHA, Pero. Carta a El-Rei Dom Manuel sobre o achamento do Brasil. Ministério

    da Cultura, Fundação Biblioteca Nacional: Domínio Público, 1500.

    GAMA, José. O Uraguai. Ministério da Cultura, Fundação Biblioteca

    Nacional: Domínio Público, 1769.

    GAMA, José. O Uraguai.  Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013.

    GANDAVO, Pero. Tratado da terra do Brasil; História da provincial de Santa

    Cruz. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1980.

    MELLO, Sebastião. Directorio, que se deve observar nas povoaçoens dos indios do Pará, e Maranhaõ: em quanto Sua Magestade naõ mandar o contrario. Lisboa, 1758. Portal O Senado, 2025. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/518740. Acesso em: 20 de fevereiro de 2025.

    NASCIMENTO, André. O indígena em três fases na literatura brasileira: uma análise sobre a continuidade de estereótipos, reconciliação e apagamento cultural. REGIT, [S.l.], v. 10, n. 2, p. 79-90, dez. 2018. ISSN 2359-1145. Disponível em: <http://revista.fatecitaqua.edu.br/index.php/regit/article/view/REGIT10-A6>. Acesso em: 22 Abr. 2025.

     

     
  • Palavras-chave
  • Colonização. Estereótipos. Povos Originários.
  • Área Temática
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O 4º Seminário de Pensamento Social Brasileiro: intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, será realizado entre os dias 2 e 6 de junho de 2025, no formato híbrido. A programação presencial será realizada nas dependências do CCHN-Centro de Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito Santo, enquanto a programação virtual será transmitida pelas páginas oficiais do evento no YouTube e pela DoityPlay. Nesta edição contaremos com Conferência de Abertura, Grupos de Trabalho (modalidade virtual) e Conferência de Encerramento. Esperamos retomar o diálogo proposto nas edições anteriores do evento (1º SPSB2º SPSB e 3ºSPSB) que resultaram na publicação de livros oriundos das áreas temáticas presentes anteriormente (Coleção Pensamento Social Brasileiro-Volume 1 Volume 2 Volume 3 Volume 4), publicarmos novos livros oriundos desta edição do evento e que novas conexões possam ser criadas. Com esses sentimentos de alegria e reencontro, lhes desejamos boas-vindas!

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