Este estudo parte de um desconforto latente: a percepção de que, mesmo nos espaços que se dizem libertadores e comprometidos com a emancipação da população negra, emergem formas sutis – e às vezes explícitas – de vigilância e controle. A pesquisa investiga, portanto, os mecanismos simbólicos, políticos e comportamentais contemporâneos que, operando sob a bandeira do antirracismo, impõem ao sujeito negro uma nova série de prescrições, expectativas e performances. O objetivo geral é compreender e problematizar esses dispositivos normativos, sobretudo à luz de práticas e discursos que se proclamam antirracistas, mas que, em seu funcionamento cotidiano, reproduzem lógicas de tutela, censura e domesticação da liberdade negra.
Os objetivos específicos da pesquisa são três: primeiro, identificar como espaços ditos libertadores, como universidades e movimentos sociais negros, muitas vezes reproduzem lógicas normativas que limitam a autonomia do sujeito negro; segundo, analisar os efeitos subjetivos dessas normatividades na vida cotidiana e na produção intelectual de militantes, acadêmicos e artistas negros; e, por fim, propor uma alternativa ética e política que afirme uma liberdade negra radical, plural e subjetiva, que não se limite à representação ou à obediência a roteiros ideológicos pré-estabelecidos.
O problema central que orienta a reflexão é: em que medida os discursos e práticas antirracistas contemporâneos, ao propor modelos de representatividade e autenticidade racial, acabam impondo novas formas de controle simbólico sobre os sujeitos negros? Trata-se, aqui, de identificar não apenas as opressões oriundas da branquitude institucionalizada, mas também aquelas que se estruturam dentro do próprio campo antirracista. O sujeito negro, que historicamente lutou por visibilidade, direito à palavra e ao reconhecimento pleno de sua humanidade, agora se vê pressionado a representar um “negro ideal”, um modelo de coerência política, estética e afetiva que, longe de promover emancipação, limita e aprisiona.
A justificativa para este estudo repousa em três pilares fundamentais. Primeiro, a urgência de desnaturalizar as normatividades emergentes nos espaços de luta racial, que, mesmo bem-intencionadas, frequentemente reiteram padrões de coerção, silenciamento e punição simbólica. Segundo, a necessidade de afirmar uma concepção de liberdade negra que não se confunda com performatividade engajada ou estética racializada, mas que valorize a pluralidade, o desejo, a contradição e a subjetividade. Terceiro, o compromisso ético com uma crítica construtiva e interna à militância negra, que, sem negar a importância da luta antirracista, ouse tensionar suas formas autoritárias e seus dogmas identitários.
O texto parte do pensamento de Frantz Fanon, sobretudo de sua obra Pele Negra, Máscaras Brancas, para demonstrar como a subjetividade negra, historicamente colonizada pelo olhar branco, continua aprisionada por novos modelos de expectativa racial. Fanon denuncia a condição existencial do negro obrigado a se mascarar para ser aceito – ontem pelo branco, hoje por seu próprio coletivo. Essa denúncia é aprofundada pela leitura de Achille Mbembe, que em Crítica da Razão Negra revela como o corpo negro é capturado não apenas pela exclusão, mas também pela funcionalização: aceito desde que cumpra um papel simbólico, seja de resistência, dor ou exemplaridade política. Com Muniz Sodré, em O Fascismo da Cor, o argumento ganha novos contornos ao se evidenciar como a identidade racial pode operar como critério de vigilância moral, instaurando um fascismo cultural que exige conformidade estética e comportamental dos sujeitos negros, mesmo nos espaços tidos como libertadores.
A linguagem torna-se um dos instrumentos centrais desse novo regime de controle. Palavras como “palmiteiro”, “negro de alma branca”, “negresco” ou “militante gourmet” são utilizadas como armas simbólicas para policiar comportamentos, escolhas afetivas e posturas ideológicas. Essas expressões, embora muitas vezes proferidas por outros sujeitos negros, reforçam o racismo internalizado e a normatização da subjetividade, funcionando como dispositivos de exclusão dentro da própria militância. Stuart Hall, Grada Kilomba e bell hooks são convocados para pensar a linguagem como campo de disputa e como local privilegiado da construção – ou destruição – das identidades. Hall lembra que a identidade é sempre um processo em construção; Kilomba aponta que o racismo opera como captura de corpos e subjetividades; hooks afirma que o olhar negro precisa ser um olhar de resistência criativa, não de docilidade a um modelo.
Nesse contexto, o conceito de representatividade também é criticado. Quando se exige do sujeito negro que represente algo maior do que ele mesmo – uma causa, um coletivo, uma narrativa política –, corre-se o risco de reduzir sua existência à função. A liberdade então é trocada pela função política; o desejo é trocado pela coerência. Angela Davis, Sueli Carneiro e bell hooks apontam, cada uma a seu modo, os perigos de uma luta que se institucionaliza em dogmas. Não há liberdade onde há doutrina racial imposta – ainda que essa doutrina venha travestida de resistência.
A universidade é apresentada como um espaço emblemático desse paradoxo. O sujeito negro, mesmo após conquistas como cotas e ações afirmativas, continua sendo vigiado e deslegitimado em sua trajetória acadêmica. A solidão epistêmica, o questionamento constante de sua competência e o silêncio imposto sobre suas temáticas e afetividades demonstram como a estrutura permanece hostil. A militância, por sua vez, reproduz esse padrão, cobrando autenticidade, engajamento contínuo e fidelidade ideológica. A identidade negra passa a ser medida não pela singularidade de trajetórias, mas pela adequação a uma cartilha invisível e coercitiva.
A institucionalização da militância negra também traz dilemas. A aproximação com o Estado e com partidos políticos pode comprometer a autonomia crítica dos movimentos. Ao mesmo tempo, a radicalização interna dos discursos transforma divergência em traição, minando a pluralidade e impedindo o debate. Exemplos como a FLIP de 2017 e as tensões em torno de figuras públicas como Taís Araújo e Douglas Belchior ilustram como os critérios de representatividade e legitimidade são frequentemente utilizados como armas políticas para excluir ou silenciar.
Diante disso, o texto propõe uma concepção de liberdade negra radical, que não se define por estética ou coerência, mas por subjetividade, desejo e contradição. Fanon é retomado para sustentar a ideia de liberdade como recusa – recusa ao modelo, ao papel, à máscara, à função. Essa liberdade é encarnada por artistas, performers e intelectuais que desafiam as normas do pertencimento racial: Ventura Profana, Linn da Quebrada, Jota Mombaça e tantos outros que afirmam uma negritude queer, afetiva e insubmissa. A liberdade se realiza, aqui, como desobediência criativa.
O conhecimento, por sua vez, é ressignificado como campo de invenção. Iniciativas como a Escola Maria Felipa, a ABPN e os NEABs mostram que é possível construir epistemologias negras autônomas, que não se subordinam à lógica eurocêntrica e que valorizam a experiência, a oralidade, o afeto e a ancestralidade como fundamentos legítimos do saber. Ao lado disso, o corpo negro é reivindicado como território de criação: um corpo que deseja, sente, ama, erra – e que não precisa se justificar diante de nenhuma norma política.
A liberdade negra radical que este texto propõe é, portanto, uma utopia insubmissa. Ela não opera sob vigilância, não pede licença e não se submete a cartilhas ideológicas. É uma liberdade que nasce da recusa e se sustenta na invenção. Uma liberdade que afirma o direito do sujeito negro de viver fora dos limites impostos pela branquitude – e, também, fora dos limites impostos por modelos engessados de representatividade racial. Essa liberdade não se explica, não se justifica e não se mede pela utilidade. É uma liberdade que afirma o excesso, o erro, o silêncio e o desejo como dimensões legítimas da existência negra.
As considerações finais do trabalho não encerram o debate, mas o ampliam. Reconhecem que há uma dor profunda em perceber que a libertação prometida pode vir acompanhada de novas formas de opressão. E lançam uma pergunta essencial: quantas subjetividades negras ainda precisam se calar para caber nos discursos que falam em seu nome? A liberdade que se deseja afirmar aqui é aquela que começa quando termina a obediência. Uma liberdade que não se curva nem ao racismo branco, nem à ortodoxia militante. Uma liberdade, enfim, que seja vivida – e não apenas representada.
O 4º Seminário de Pensamento Social Brasileiro: intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, será realizado entre os dias 2 e 6 de junho de 2025, no formato híbrido. A programação presencial será realizada nas dependências do CCHN-Centro de Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito Santo, enquanto a programação virtual será transmitida pelas páginas oficiais do evento no YouTube e pela DoityPlay. Nesta edição contaremos com Conferência de Abertura, Grupos de Trabalho (modalidade virtual) e Conferência de Encerramento. Esperamos retomar o diálogo proposto nas edições anteriores do evento (1º SPSB, 2º SPSB e 3ºSPSB) que resultaram na publicação de livros oriundos das áreas temáticas presentes anteriormente (Coleção Pensamento Social Brasileiro-Volume 1 Volume 2 Volume 3 Volume 4), publicarmos novos livros oriundos desta edição do evento e que novas conexões possam ser criadas. Com esses sentimentos de alegria e reencontro, lhes desejamos boas-vindas!